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sexta-feira, 30 de março de 2012

Ninguém entra sozinho nessa noite tão longa


Lembro-me, como se tivesse sido ontem, do dia em que a avó Lucinda morreu. Foi um dos piores dias da minha vida. Sentia-me a desaparecer atrás das lágrimas, dos gritos, dos gemidos, das súplicas. A minha mãe abriu a porta e saiu para a rua. Também ela desaparecia atrás das lágrimas, dos gritos, dos gemidos, das súplicas. Quem andava na rua perguntava o que se passava. Ninguém entendia as palavras. Todos entendiam o vazio nos olhos dela - atrás das lágrimas. Em momentos, a nossa casa encheu-se de pessoas: amigos, conhecidos e outras pessoas que não fazia ideia de quem fossem. Todos se abraçavam, choravam, sussurravam, ofereciam ajuda. Nesse dia tão trágico, dei por mim a entender a mais estranha dinâmica das relações humanas: são as tragédias que nos unem.
Somos feitos da vida dos nossos sucessos, mas, por outro lado, somos o produto inacabado dos nossos fracassos. Dramatizamos o mundo como mundo que é. Choramos por alegria e choramos por tristeza. Seremos sempre o exemplo mais abstracto de tudo o que nos rodeia. À nossa volta não girarão planetas nem satélites, não seremos o centro de nada, mas pensaremos como tal. À nossa volta girarão pessoas e à volta dessas pessoas mais pessoas, e eventualmente seremos o centro de um universo com eixo no nosso umbigo. Somos amigos nas tragédias dos nossos amigos: choramos com eles, abraçamo-nos a eles, conversamos com eles até que tudo acabe. Confortamo-los na esperança que um dia eles nos confortem a nós. Se formos realistas pensaremos assim. Daremos sempre a mão na esperança que, do outro lado, os dedos se fechem sobre nós e não nos larguem. Viveremos todos os dias com receio do mundo. Porque o mundo será sempre feito de dias de chuva e dias de sol, de dias maus e dias bons, de um dia ter e no outro já não. Esperamos na esperança que nos esperem – sempre. Do outro lado fazem o mesmo. Os nossos amigos também nos esperam na esperança que os esperem. Se assim não for, de nada valerão os nossos dedos à procura dos dedos deles. Ninguém será suficiente. Ninguém será a luz na noite escura. E, de facto, há muitas noites escuras. Assim como há noites em que a lua é cor de pérola e o tempo parece parar. Seremos amigos também nessas noites. Seremos mais amigos nessas noites. Tenho para mim que a amizade é mais difícil nos sucessos que nos fracassos. Quando fracassamos, todos nos dão as mãos. Todos nos parecem tristes por simpatia. Todos choram connosco – uns mais que outros. Uns de forma mais genuína que outros. As coisas más da vida sempre funcionaram como o cimento que nos une. Mas são as coisas boas que vêm provar até que ponto todos estamos unidos. Na verdade, os sucessos de uns são vistos como os insucessos de outros. Ninguém está preparado para girar à volta de ninguém. Invejaremo-nos uns aos outros na bonança. Nem todos por maldade ou mau carácter, mas porque ninguém está preparado para não ser o centro do seu universo. A inveja será sempre feita daquilo que não conhecemos, mas, se quisermos, se realmente amarmos os nossos amigos como amigos, a nossa inveja será transitória. Um dia, o que não conhecemos será o que iremos conhecer, e nesse dia seremos a massa mais compacta que poderemos ser. Nada nos separará - nem o nosso melhor, nem o nosso pior. Não será esta a verdadeira definição de amizade?
Por mais que queira, nunca esquecerei o dia em que a avó Lucinda morreu. Sempre que o recordo, fecho as mãos em busca de um dedo que seja que não me deixe ficar sozinho. Nunca fiquei. Espero nunca ficar. Há um momento na noite escura em que a lua é cor de pérola e tudo é permitido. Mas ninguém entra sozinho nessa noite tão longa.

PedRodrigues

(Crónica da edição de Abril da revista Algarve Mais)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Digo eu, que não entendo nada disto


Estamos mergulhados no caos. Caminhamos sem rumo definido e, no meio desse processo, acabamos por nos atropelar barbaramente uns aos outros. Vivemos num país de falsas aparências e de moralidades duvidosas. Não somos pioneiros em nada, mas inchamos de orgulho com a nossa ignorância. Somos constantemente bombardeados pela cultura de croché que os meios de comunicação nos apresentam, dia após dia. Acabamos por viver numa bolha de sabão, ansiosos com algo que não sabemos bem o quê. Rimo-nos da estupidez alheia, choramos com os dramas dos artistas das novelas, sofremos com os problemas dos senhores que são capas de revistas, sonhamos ser como o miúdo lá da terra que foi cantar à televisão e que agora é famoso por quinze minutos. Esquecemo-nos da realidade que nos rodeia e não temos sequer vontade de definir um rumo para a nossa vida. Afundámo-nos ao longo dos anos em dívidas e promessas de um futuro melhor. Hoje em dia somos obrigados a apertar o cinto - mas custa-nos apertar o cinto. Engordámos ao longo dos anos. Viajámos pelo mundo, com medo que o mundo nos fugisse entre os dedos. Tirámos fotos que ainda hoje mostramos aos nossos amigos quando, esporadicamente, nos juntamos para um jantar de convívio. Ainda nos rimos – timidamente. Falamos com nostalgia dos tempos em que nos juntávamos todas as semanas. Recordamos os carros que fomos obrigados a vender porque os miúdos entraram para a faculdade e as propinas são estupidamente elevadas. Falamos do trabalho com tremores nos lábios porque as coisas não andam bem na empresa e o patrão já despediu mais uns poucos. Olhamos para o futuro com um pavor imenso. Na televisão somos contemplados por políticos de olhos vazios. Os lábios deles também tremem quando falam, e as palavras saem ocas, sem significado. Sentimo-nos governados pela descrença, pela ignorância e pela falsidade – mesmo que assim não o seja. Levamos constantemente com lições de economia como se fizéssemos parte de uma seita de catedráticos. Nada entendemos, a não ser os olhos vazios e os sistemáticos pedidos de paciência e compreensão. Quem nos pede, pede cegamente, esquecendo-se que a paciência, tal como a ignorância, tem limites. Estamos a chegar ao ponto de ebulição. As greves começam a tornar-se sinónimo de motim. A anarquia teima em mostrar a sua face. Repito: estamos mergulhados no caos. As forças policiais descarregam a sua fúria e indignação na marcha dos restantes indignados. Estamos a ser recrutados para uma guerra onde o inimigo não tem rosto – nem sexo, nem idade. Os confrontos ameaçam tornar-se cada vez mais sangrentos. Acabaremos por nos atropelar uns aos outros, num país onde não há rei nem roque. Infelizmente é esta a nossa realidade. Somos feitos das mais finas páginas de história, mas o nosso presente é um cabo das tormentas sem uma boa esperança à vista. Tenho pena que caminhemos cegos, sem um rumo definido. Tenho pena que não sintamos orgulho da nossa cultura: que os museus continuem vazios; que os livros não tenham quem os leia; que os sofás continuem cheios e as salas de teatro vazias. Somos o produto das novelas e dos reality shows. Uma cambada de seres aculturados. Ainda temos a lata de perguntar como chegámos a este estado?

PedRodrigues

quinta-feira, 8 de março de 2012

Um breve elogio da estupidez masculina


(-Pudesse eu dizer-te quão bela és.)

No jardim, velhinhos de mãos dadas. Vidas de passeios partilhados, de humores partilhados, de beijos partilhados, de conversas partilhadas. No meio das conversas partilhadas, filhos partilhados, fraldas partilhadas, biberões partilhados, as contas da creche, as roupas sujas do futebol dos miúdos, tudo partilhado. Os filhos crescem e partilham as mulheres e com as mulheres partilham o mundo e no meio do mundo mais filhos e no meio dos filhos uma mágoa pequenina por tudo aquilo que acabaram por não fazer. E tudo aquilo que ficou por fazer não passa disso e nada disso se vê atrás das rugas. Nada disso se vê atrás das mãos dadas enquanto passeiam pelo jardim a dar pão às pombas, numa harmonia sobrenatural que gostava de entender.
Sento-me no banco e respiro mais um pouco. Não que me sufoques. Não é isso. Gostava de te conseguir dizer

-É difícil

Sem rodeios, de uma vez. Mas a verdade é que me é difícil dizer-te

-É difícil

Meto-me a imaginar o que virá depois disso. E que futuro terá um “é difícil” vindo assim a seco, sem razão, sem qualquer sentido? Na melhor das hipóteses ficas calada uns minutos, espantadíssima com tudo aquilo. A conversa morre por uns momentos, até te lembrares de a ressuscitar com um

-O quê?

E eu não estou preparado para responder, juro-te que não estou. Custa-me dizer-te que é difícil viver sem ti. Que deixei crescer a barba como penitência. Que evito os olhares matreiros sempre que saio com os meus amigos para beber um copo. Que a comida não me sabe a nada. No trabalho não me consigo concentrar e em casa não consigo funcionar. Procuro-te onde posso: no computador, no telemóvel, nos brincos que deixaste na gaveta da mesinha de cabeceira. No outro dia apanhei um cabelo teu que andava perdido no guarda-roupa e lembrei-me da primeira vez que entraste lá em casa de mão dada comigo. Apertavas-te contra os meus dedos, como se tivesses medo dos esqueletos que guardava nas paredes. Olhavas em todas as direcções numa busca incansável por provas de crimes passados, ou uma razão para partires. Nunca te dei razão alguma para partires até ao dia em que acabei por dar. E nesse dia foste embora e eu fui-me ficando por aí. É difícil ficar por aí. Juro-te que é difícil. Talvez para ti seja mais fácil. Sempre foste a catalisadora do meu melhor lado. Sempre despertaste a pessoa que há em mim. De modo que hoje sou um animal. Hoje sou uma pomba à espera de uma migalha tua. A olhar-te com toda a esperança que trago no corpo, quase mudo, enquanto tento soltar um

-É difícil viver sem ti

Na procura de uma migalha

-Para mim também não tem sido fácil

(Os velhinhos de mãos dadas a olharem para nós)

-Pudesse eu dizer-te quão bela és. Pudesse eu dizer-te como gosto de ti.

Um bando de pombos a atropelarem-se por uma migalha. Enquanto eu, mudo, olho para ti. Na minha cabeça passeia-se a nossa vida ao lado um do outro: conversas partilhadas, amores partilhados, beijos partilhados, filhos partilhados, passeios partilhados. No meio dos passeios partilhados um desejo corrosivo de fazer tudo aquilo que não fiz. No meio desse desejo estás sempre tu. Viveremos sem ter dado o nosso melhor. Não adianta atirar culpas, a vida será sempre assim. Atrás das nossas rugas ninguém verá o dia de hoje. Atrás das nossas rugas ninguém verá que

-É difícil

Fui eu o parvo que te deixou partir.

PedRodrigues

quinta-feira, 1 de março de 2012

Feliz aniversário, Pedro


Vamos crescendo em silêncio, na esperança vã que o tempo não nos ouça. Vamos dando tempo aos nossos passos para que sejam cada vez maiores. À medida que vão crescendo, nós vamos crescendo com eles: sempre a olhar para trás, a contar as migalhas. De repente chegamos aonde nos esperam. Somos feitos do tempo que demoramos a lá chegar. Somos feitos das montanhas que subimos, dos mares que atravessamos, da areia que pisamos, do ar que respiramos. Somos feitos do mundo - e o mundo é feito de nós. Somos feitos das mãos dos que partilham esta jornada connosco. Crescemos com a relva, em silêncio. Crescemos com as árvores, em silêncio. Crescemos de mãos dadas, em silêncio. Não queremos que o tempo nos ouça, mas vivemos num desespero constante para que não nos esqueça. E então procuramos nos nossos dedos outros dedos. Vamos apalpando até não nos sentirmos sozinhos. Nesse momento somos felizes. Nesse momento somos feitos das memórias: das nossas e das dos outros. Sentimo-nos especiais. Sentimo-nos parte do tempo que passa por nós. Existimos nas vidas uns dos outros, numa corrente de amor que por vezes não entendemos. Precisamos uns dos outros para que essa corrente não deixe de existir. Existimos enquanto plural. Partilhamos as mesmas águas onde todos nos banhamos: num rio de ternura abstracta, quase escondida, que não damos conta. Seremos sempre um produto inacabado aos nossos olhos: morreremos sem ter feito tudo aquilo que nos propusemos a fazer. Mas, pelo menos, seremos lembrados pelo pouco fizemos e nunca pelo muito que deixámos por fazer. Crescemos com medo que o tempo se lembre de nós. Crescemos mudos. No entanto, não queremos ser esquecidos. Vivemos numa procura constante para o amor que trazemos guardado. Se realmente formos dignos, daremos esse amor sem pedir nada em troca. Então as nossas mãos não se fecharão sozinhas. Seremos sempre lembrados por quem nos ama. Faremos parte do tempo deles, e seremos esse mesmo tempo. Hoje dou por mim numa luta incansável contra o esquecimento. Um dia não estarei cá para lutar. Nesse dia, sei que serei mais que uma simples fotografia na estante da sala. Sei que quem me ama, não me esquece – não me esquecerá. De modo que vou crescendo em silêncio, com medo que o tempo me ouça, e sem que ele veja vou dando as mãos por aí, na esperança vã(?) que um dia o mundo inteiro se lembre que existo.

Parabéns a mim.

PedRodrigues