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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Nem sempre nos amamos ao mesmo tempo


Este sou eu no pináculo do meu masoquismo.
A história é simples: é só mais uma daquelas histórias de amores desencontrados. Nada que fuja ao banal, ao mundano, àquilo que pode acontecer a qualquer um. Às vezes o amor acontece na altura errada. Neste caso aconteceu sempre na altura errada. Às vezes não queremos quando devemos querer, e depois, quando queremos, não podemos ter. Esta é só mais uma dessas histórias.
O nome dela

-Maria João

O meu nome

-Miguel

Quantas vezes os sussurrámos ao ouvido? Quantas vezes nos deixámos ficar empoleirados um no outro? Quantas vezes vimos a lua e as estrelas deitados na areia? Quantas vezes passeámos juntos ao pôr-do-sol? Quantas vezes reinventámos todo o tipo de chavões amorosos? Sinceramente perdi-lhes a conta. Perdi a conta aos telefonemas, aos sorrisos, às coisas banais e às menos banais que dizíamos e que fazíamos. Perdi-lhes a conta porque, para o bem ou para o mal, quando estava com a Maria João o mundo era apenas barulho, nada mais. Tínhamos tudo para dar certo, não fosse a nossa aptidão para a autodestruição. E assim sendo, como terroristas amorosos que somos, acabámos por destruir todas as hipóteses de felicidade que tivemos. Lembro-me de uma vez lhe perguntar

-Gostas de mim?

Olhos nos olhos e de unhas cravadas na carne com medo que me fugisse. Respondeu-me entre os dentes

-Gosto de ti, mas…

Pedi-lhe que repetisse

-Gosto de ti, mas…

Sentia-a a contorcer-se para que a largasse. Às vezes aquilo que julgamos ser nosso foge-nos entre os dedos. Esta foi uma dessas vezes. Correu para longe de mim, sem olhar para trás, sem querer saber do rasto de destruição que tinha deixado. Nada. Seguiu com a vida dela e eu segui com a minha. Conheci outras mulheres, apaixonei-me por uma delas e chegámos mesmo a namorar. Construi uma vida por cima da chaga que a Maria João deixou no meu coração. Na minha cabeça cheguei mesmo a apagá-la, mas o coração rege-se pelas suas próprias leis e nele a Maria João continuava viva. Os dias passaram, os meses passaram, os anos acabaram por passar também. As rugas instalaram-se, a namorada deixou de ser namorada e passou a ser mulher, nasceram os filhos, esses filhos cresceram e no meio de todo este processo a Maria João continuou uma sombra, e apesar de ninguém lhe ligar, ela teimava em perseguir-me para onde quer que fosse. Foi uma sombra e continuou uma sombra até há uns meses quando a encontrei num restaurante durante um jantar de negócios e trocámos contactos. Desde esse dia que ela se tornou novamente num ser material e num compêndio de complicações: divorciada, viciada no jogo e sem filhos. O protótipo perfeito de uma tempestade sem fim à vista, desdenhosa por um pouco do meu afecto

-Gostas de mim, Miguel?

(Eu a contorcer-me)

-Gosto de ti, mas é só isso.

Ela a chorar, a espernear, a berrar. A insultar-me enquanto me esmurrava o peito. Às vezes o amor acontece na altura errada. E esta seria a pior altura para acontecer. Este sou eu no pináculo do meu masoquismo. Um dia eu amei a Maria João e ela fugiu-me. Um dia a Maria João amou-me e eu fugi-lhe. O amor não tem de acontecer sempre que queremos. Há um tempo para tudo. E às vezes os tempos de amar não coincidem. Mas a vida continua.

-Como é suposto viver daqui para a frente, Miguel?

Respondi-lhe

- A ideia é simples: não deixar morrer o que um dia nos deu alento.

Mal sabe ela que tive de a matar mais de mil vezes, para um dia ser feliz.

PedRodrigues

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O dia em que sonhei ser Fernando Pessoa



26 de Novembro de 1930

Olhamos o sol com medo que nos cegue. Encaramos a vida como devemos encarar: vivendo. O mundo estende-se à nossa volta: infinito e incerto. O sol deita-se na nossa pele e na pele do mundo. Encaramos a vida com medo que um dia ela decida morrer. Tudo o que se estende à nossa volta é infinito e incerto. Nós somos pequenos no mundo. Eu sou pequeno no mundo. Eu sou pequeno para o sol que se deita na minha pele. Sou feito da matéria dos homens, mas não sou como os homens. Sou uma miragem, um reflexo, um desassossego. O mundo estende-se à minha volta e eu sou um fantasma que teima em não existir no mundo. As pessoas esquecem-me para lá das palavras que deixo no papel. Ninguém sabe onde começa o homem e acabam as palavras, ou onde começam as palavras e acaba o homem. Confundem-me com as minhas personagens, com as minhas fotografias, com os meus desenhos. Se um dia quiserem definir-me, definam-me como aquele que gera a confusão. Definam-me como a própria confusão. O Fernando que dá a mão à caneta não é o mesmo que o vidro reflecte. É aquele que dá chão ao sol, mas não aquele que o sol procura. Um dia entenderão estas palavras como as palavras daquele que escrevia para existir. Que a verdade continua a ser esta: eu existo nas palavras que escrevo e para lá dessas palavras sou apenas uma miragem.
Compreendam-me como um ser perturbado, mas nunca louco. A loucura está naqueles que teimam em querer compreender-me. Trancaram-me neste quarto para me apodrecerem a carne. Trancaram-me sozinho, mas esquecem-se que eu nunca ando sozinho. Eu sou aquele que vive estilhaçado pelo tempo. Tenho identidades desconhecidas. Tenho vidas que se multiplicam para lá da própria vida. Sou feito dos deuses que invento e dos homens que me falam baixinho, ao ouvido. Sou um projecto de projectos futuros que, por mais que vocês tentem, nunca irão entender. Nesta escrivaninha coçada pelas unhas dos meus antecessores escrevo-vos o que me permito escrever. Sou o mar que se estende da minha janela e que reflecte o esplendor da vida lá fora. A vida despenha-se na areia com as ondas. Tal como os homens teimam em se despenhar uns nos outros e esquecer os sonhos. Se pudesse inventar um mundo – e posso – inventava-o com homens eternos. Homens que se estendem para lá das ondas e do mar. E onde os sonhos comandam a vida e os homens não têm medo de sonhar.

Fernando



(PedRodrigues)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Amar em tempo de crise


O dia em que parti foi um dos dias mais difíceis da minha vida. Ainda te consigo ouvir

-Não vás

A soluçar entre as lágrimas enquanto me vias entrar no táxi. Se imaginar com muita força, ainda consigo sentir o calor da tua pele, ou o cheiro do teu colarinho. Deixar-te para trás foi a decisão mais difícil que tive de tomar, mas era a única decisão possível. Conhecemo-nos num tempo em que tudo era mais fácil. Foram três anos de bonança. Três anos de despreocupação. Existias tu, os livros, as bebedeiras, os amigos, as viagens. Nada nos faltava e tudo nos era dado de mão beijada. Dividíamos o tempo entre sorrisos, carícias, a Torre Eiffel, o Big Ben, o Coliseu de Roma, uma ou outra discussão, fotografias e mais fotografias e nessas fotografias mais sorrisos e mais carícias. A vida parecia tão simples naquele tempo.
Quando terminámos o curso, ambos achávamos ter destruído um monstro. Terminámos de sorriso no rosto e sensação de dever cumprido. Dali para a frente seria sempre a subir: eu iria começar por baixo numa empresa, mas em poucos anos chegaria ao topo; tu abririas o teu próprio consultório e atenderias centenas de pessoas por ano. Naquele tempo o céu era o limite. Lançámo-nos aos lobos, entrevista atrás de entrevista, mas as coisas teimavam em não acontecer. Nunca desesperámos

-Pensamento positivo

Nunca baixámos os braços. Na televisão os governantes mandavam-nos emigrar, mas nós nunca o faríamos. Deixar para trás tudo aquilo que conhecemos? Depois havia a questão dos teus pais

-A minha menina

Que se contorciam só de nos ouvir falar em ir trabalhar para fora. A tua mãe que entretanto tinha descoberto aquele caroço num seio. Toda uma panóplia situações que nos prendiam às nossas raízes. Deixar para trás o meu país? Deixar para trás aqueles que amo?

-Nunca

Continuámos juntos no meio de toda aquela tempestade. Creio que se não fosses tu, teria saltado na primeira oportunidade. Mas amava-te, como ainda hoje te amo. E é difícil. Aliás, é cruel abandonar quem se ama. Dói, dói muito. Não imaginas como me sinto de cada vez que vejo as nossas fotografias – juntos e felizes -  ou de cada vez que falo contigo por telefone. Sinto aquela parte de mim, que outrora trazia todos os sonhos do mundo na algibeira, a morrer. Sinto-me a forçar os sorrisos e não imaginas o esforço que faço para manter a calma e não me desfazer em prantos desmedidos. Amar em tempo de crise é algo que roça o sadismo. Um dia sonhei casar contigo, mas um dia esse sonho foi-me roubado. Quem foram os sacanas que nos condenaram a este destino? Quem foram os crápulas que nos pisaram os sonhos? Um dia julgámos que a vida era a direito. Hoje podemos ver que não é. No entanto uma coisa te garanto:

-Não desisto

Não desisto de nós. Não desisto dos nossos sonhos. Enquanto tiver saúde e enquanto tiver trabalho

-Não desisto

Espero que desse lado do oceano faças o mesmo. Não baixes os braços, levanta a cabeça. Daqui a uns meses voltaremos a estar juntos. Quem sabe se daqui a uns anos não chegaremos mesmo a casar? O mundo está em crise é um facto. A vida está difícil é um facto. Mas quem ama na tempestade, não esquece na bonança. Não desistas de ser feliz.

PedRodrigues

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ensaio sobre o absurdo


A única luta que trago, a única luta que me permito és tu. O meu quarto ainda tem os contornos do teu corpo nas paredes. Eu sei: parece absurdo. Como poderia a carne moldar o betão duro? Não me perguntes os enigmas da vontade. Não me perguntes os porquês das coisas que não têm explicação. Aceita-as por serem como são e não por aquilo que supostamente deviam ser. A vida é feita de vontades. A minha vontade é feita de vontades. Quase consigo respirar-te. Será que és feita de ar? Em toda a parte as tuas cores são cores de sítio nenhum. Não és, mas aparentas ser, e isso é tão bom. O mundo é este sítio tão louco, é este sítio tão estranho. Se me perguntassem diria que estamos a sul do paraíso e a norte do inferno. Estamos ali no meio a viver no purgatório. Vamos pagando pelos nossos pecados à medida que os cometemos. Se me perguntassem diria que vivemos para pecar todos os dias. Há tanto amor vadio por aí e tanta gente desesperada por algum amor. Tanta gente a morrer por um pingo de amor e tanta gente a matar-se por amar demasiado. Há demasiadas Julietas e outros tantos Romeus que, algures a meio da peça, decidiram emigrar com a jeitosa que lhes piscava o olho da plateia. O mundo é um sítio demasiado estranho. Às vezes contemplamos o céu na esperança de um milagre, o mais triste é que acabamos por ignorar os milagres que nos rodeiam aqui por baixo. Pecamos por ignorar o que nos rodeia e o pior é que o inferno está mesmo aí à porta. O diabo puxa-nos as pernas a cada segundo que nos distraímos. Se me perguntassem pelos Romeus diria que foram puxados para sul pelo diabo. Os homens foram feitos para viverem depressa. A vida de um homem é um segundo na vida de Deus. Mas não é de Deus e dos homens que te falo, pois não? Falo-te da minha luta: a única que trago e a única que me permito. És a minha luta, sabias? Eu sei que parece absurdo, mas nós que vivemos neste purgatório, neste limbo entre o céu e o inferno, temos a mania de contrariar a vontade de Deus e dos anjos e do diabo. A vontade dos homens é viverem eternos. A vontade dos homens é escaparem à luta dos gigantes. O céu não chora quando um homem morre. O céu não ama os homens. O céu é um gigante azul que olha de cima para nós. O meu sonho é ser para sempre olhado de cima pelo céu. É por isso que luto. Tu és a minha luta, lembras-te? Amar-te é ser feito de ar, e o ar não se esgota. O ar é eterno, não é? Espero que sim. Talvez a minha luta se confunda com a luta dos homens. A única diferença é que eles vivem demasiado depressa para serem eternos enquanto que eu já sou eterno no teu amor.

PedRodrigues

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Croniquinha em jeito de poema


À luz dos dias que acontecem, vou-me misturando de cores nos teus olhos. Esses teus olhos que hoje são avelã e amanhã esmeralda. Espero ansioso pela luz dos dias que acontecem. Acontecer nos teus olhos é ser melhor. Acontecer nos teus olhos é multiplicar-me por mil em ti. Ao longe caminhas na direcção dos meus passos. Ao longe o teu perfume dissipa-se no ar. É estranho olhar o mundo espelhado em ti. Às vezes sonho que o mundo desaparece. No final das contas resta a minha imagem nos teus olhos. Nesse momento existimos os dois, nada mais. Já reparaste que, quando não estás, perco eternidades a olhar o relógio? Não reparaste. Como poderias reparar? Não poderias. Acreditas em mim? Acreditas. Eu sei que acreditas. Os meus olhos nos teus olhos não mentem. As minhas mãos nas tuas mãos não mentem. Prometemos não mentir um ao outro e isso fica registado no sangue. Prometemos o mundo um ao outro e isso não é algo que se faça de ânimo leve. Há promessas que merecem ser cumpridas. Há metas que merecem ser alcançadas. Misturar-me na cor dos teus olhos é sentir-me vivo. Encontrar-me nos labirintos da tua pele é ser mais e melhor. Olhar-te ao longe sem poder-te tocar é matar-me lentamente. Já reparaste que, quando não estás, o relógio teima em parar o tempo? Reparaste. Eu sei que reparaste. Consigo ver nos teus olhos a impaciência disfarçada. Consigo ver no teu corpo a vontade urgente de me abraçar. À luz dos dias que acontecem, talvez chegues devagar. Ao longe vejo-te caminhar na minha direcção. Não tenhas pressa de chegar, o amor não tem cronómetro.

PedRodrigues

sábado, 3 de novembro de 2012

Acerca da banalização do Amor


No outro dia na rua

-Eu gosto de ti, mas…

Um casal de miúdos, de mãos dadas, ele para ela

-Gosto de ti, mas não passa disso.

Enquanto ela, desgostosa, de lágrima fácil a pingar do olho, a fugir-lhe com os dedos

-Então por que me iludiste?

E eis que a questão se mantém até hoje na minha cabeça: onde começa e onde acaba essa coisa do gostar com reticências? Depois há aquela coisa do gostar com muitas cores. Dos amores às cavalitas dos arco-íris. Há a ilusão do amor e os ilusionistas do amor. Hoje em dia está na moda o amor assim e assim. Nunca entendi muito bem essa coisa dos amores assim e assim. Nunca entendi aquela coisa do: hoje gosto, mas amanhã logo se vê. Não consigo entender isso porque, para o bem ou para o mal, tenho para mim que o amor é uma espécie de veneno que talvez cure, é uma faca que nos vai mutilando lentamente, ou outra coisa qualquer que nos vai dilacerando as entranhas. Custa-me acreditar nas pessoas que gostam com reticências e que amam com cláusulas contratuais. Custa-me assistir ao declínio do Amor. À banalização dos beijos e à encenação dos gestos românticos – ou vice-versa. De maneira que olho o mundo com uma desconfiança terrível. Assusto-me quando ouço

-Sinto borboletas no estômago

Pessoas de sorrisos nos lábios a trocarem impressões sobre o amor: cheias de certezas e cobertas de dúvidas camufladas. Penso para mim

-Borboletas?

(As imagens de quem amo na minha cabeça.)

Assusto-me novamente. Assusto-me porque nunca senti nada parecido. Todos me falam em unicórnios e estrelas e corações vermelhos e perfeitos. Todos me falam em borboletas, mas eu não sei o que isso é. Eu sinto cólicas, dores, tremores por todo o corpo. E depois há um frio que me gela dos pés à cabeça. Fico estático a olhar para ela. É estranho. Juro que é estranho. Há quem pinte quadros em volta do amor. Eu não encontro cores suficientes para o fazer. Talvez possa descrever o meu coração. Talvez possa dizer que é vermelho carne e que sangra como a carne de quem sente. O amor dói, o verdadeiro amor dói. Mas é essa dor que o torna tão bom. É essa dor que o torna tão intenso. Aliás, é essa dor que o torna real. É essa dor e não

-Sinto borboletas

Os cenários que montam em volta da palavra. É o sentir na carne que se esmaga contra os ossos só de pensar em dizer

-Amo-te

Nunca

-Gosto de ti, mas…

Sentir sem reticências. Olhar e tremer. Tremer muito. Ansiar pelos momentos que virão. Imaginar as estantes cobertas de fotografias. Imaginar-nos a olhar para essas fotografias e sorrir. É nesse momento em que sorrimos sem saber porquê, nesse momento de alegria pura, que descobrimos

-Sou feliz

(E quem nos ama de volta, num princípio de vasos comunicantes, nos retribui esse sorriso

-Eu também sou feliz. Ao teu lado eu também sou feliz.)

O que é o Amor. Não há cores suficientes para pintar o amor. Não há fórmulas mágicas para amar. Mas se te conseguires imaginar emoldurado, a sorrir eternamente ao lado da mesma pessoa, podes acreditar que estás no bom caminho…

PedRodrigues