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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Final de Novembro

Falar nela é falar em Novembro. Em passeios junto ao rio, a adivinhar os peixes a nadarem contra a corrente. É falar na forma como rodava no meio da calçada à procura do norte. Muito disso me fascinava. Sei lá. Fascinava-me a energia que guardava por dentro, a luz interior. Entre outras coisas, como por exemplo a curiosidade inocente com que olhava as flores. Como se procurasse de onde vinha a sua beleza. Apetecia-me dizer-lhe que a beleza não é apenas uma característica exterior e que, por vezes, as coisas mais bonitas, as pessoas mais bonitas - ela - são-no por dentro. Mas calava-me, com medo de estragar o momento. Deixava-me ficar a contemplar os cabelos de vento, a levantarem levemente acima dos ombros. Enquanto, ao longe, o sol se apagava no horizonte e as luzes dos candeeiros se acendiam. À nossa volta a cidade continuava a acontecer freneticamente. Nada disso me importava. Estávamos juntos, à distância de um toque. A minha mão começava a procurar a dela e, devagar, ao contrário de tudo o resto, os nossos dedos acorrentavam-se. Sem querer, espalhávamos olhares na nossa direcção. A cidade tinha mil olhos. E, no entanto, eu só queria morar nos dela.
Falar nela é falar no dia em que parámos debaixo de um candeeiro apagado. Olhámos para cima. Depois dos telhados havia estrelas. Regressámos a nós. As nossas mãos continuavam-nos. Embora não conseguíssemos distinguir os traços um do outro, tínhamos a certeza um do outro. No escuro não há rostos. Então disse-me ter compreendido de onde vinha a beleza das flores e beijou-me. O final de Novembro terá para sempre esse cheiro a beijos às escuras e castanhas assadas. Basta-me fechar os olhos.
 
PedRodrigues

 

 

 

 

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Outono

Ao ver as copas das árvores a abanarem com as rajadas de Outono, percebeu:
há pessoas que se julgam vento; e outras que se sentem folhas.
Umas movimentam-se segundo os caprichos das outras.

Então sonhou ser raiz.

PedRodrigues

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Crónica dos bons amigos


Estou sozinho em casa.
Olho da janela a chegada dos aviões ao destino. Imagino pessoas que vêm de longe, a chegarem com as suas bagagens - umas mais leves, outras mais pesadas. Nem todas têm as mesmas prioridades. Para algumas, a prioridade é um abraço, para outras uma reunião, para outras uma visita pela cidade, ou uma cama de hotel.
A casa está em silêncio e apenas se ouvem os miúdos a jogarem futebol na rua, por isso posso escrever sem ser incomodado. A solidão é uma coisa estranha. Apesar de gostar de estar sozinho enquanto escrevo, sinto falta do movimento dos meus amigos pela casa. O barulho de fundo irritante das conversas. As entradas de rompante nos momentos menos oportunos. A certeza de alguém com quem ralhar, por não conseguir articular as palavras. A solidão é muito boa, quando sabemos poder partilhá-la.
Ter amigos não é fácil. Não é como carregar num botão e pedir, ou aceitar ser amigo de. A amizade não é uma coisa digital, sem alma. Requer algo mais. Muito mais. Os amigos são uma espécie de força motriz que nos ajuda a avançar. Os verdadeiros amigos podem ser as pessoas mais irritantes e menos oportunas à face da terra, mas no final das contas são uma certeza universal nas nossas vidas: sorriem connosco na bonança e não nos abandonam na tempestade. Por vezes, calam-se para que possamos deitar tudo para fora. Outras vezes ajudam-nos a perceber onde errámos e mostram-nos a melhor forma de seguir o nosso caminho.
Da janela vejo o fluxo contínuo de aviões. A cada chegada, várias prioridades. As amizades também são assim: os amigos fazem dos amigos uma prioridade.
Abriram a porta. Desculpem, mas tenho de terminar esta crónica.
 

 
PedRodrigues

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Equilibrium


Ele gostava de Bukowski e era capaz de falar horas sobre isso. Ela tinha começado a ler o Sexus do Henry Miller e tinha-o pousado na mesa de cabeceira. Ele sabia a Angie, dos Rolling Stones de trás para a frente. Ela vibrava ao som das músicas que passavam na rádio. Ele gostava de longas caminhadas pela praia, no verão, ao pôr-do-sol. Ela adorava a verticalidade das chuvas de inverno. Ele adorava peixe grelhado. Para ela, nada superava um bom bife mal passado. Aos olhos do mundo, eles eram apenas mais duas pessoas condenadas ao fracasso. Matéria prima para mais um desastre amoroso. No entanto, aos olhos um do outro, nada disso importava. Quando estavam juntos, desafiavam as probabilidades. Enquanto ele lia Bukowski, ela lia Henry Miller; ao terminarem, olhavam-se nos olhos, beijavam-se e apagavam as luzes. Sempre que a Angie passava na rádio, eles desafinavam em uníssono. No verão, passeavam juntos ao longo do areal, a ver o sol desaparecer no horizonte e, no inverno, abraçavam-se a ouvir a chuva a despenhar-se no chão. Ao almoço comiam peixe, e ao jantar comiam carne. Por mais diferentes que os seus gostos fossem, eles procuravam sempre o equilíbrio. E é esta, de facto, a palavra chave: equilíbrio.

 

PedRodrigues

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Ir


Tinha o mundo todo por descobrir.
Mapas antigos indicavam novos caminhos.
Às vezes é preciso partir.
Ir.
Procurar novas cores, novas caras, novos sorrisos, novos cheiros, novos sabores.
Meter quem amamos na bagagem.
Inventar abraços feitos de quilómetros.
Ir.
Buscar o lado distante das pessoas.
Partir em direcção à saudade de novos lugares.
Marear.
Voar.
Andar.
Ter um coração teimoso como o horizonte:
não se deixar agarrar.
Ir.
Ser o que faz falta.
Ser o motivo,
a vontade,
de alguém
(v)ir.

 

 
PedRodrigues