Páginas

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

2018

Quis arranjar uma forma de medir o meu ano. De o tratar como uma grandeza mensurável, de forma precisa, sem os habituais substantivos e adjectivos abstractos com que todos analisam o tempo que passou. 
Comecei por pegar nos livros que li este ano, a esses retirei os que reli, e fiquei com um número exacto de trinta e quatro livros: cerca de um livro novo lido a cada dez dias. A este número, juntando o que reli, passaria dos cinquenta livros lidos em 2018.
Depois fiz uma contagem de textos escritos neste ano. Esta foi a tarefa mais difícil, porque tenho textos espalhados por todo o lado - a minha desorganização interior ganha uma forma mundana na escrita. Em textos soltos contei mais de cento e cinquenta ficheiros no computador e telemóvel. Em livros escritos na totalidade, entre romances, novelas e outros géneros: quatro - um dos números com maior probabilidade de saída no Euromilhões. 
Em termos de batimentos cardíacos - e esta, é a parte mais interessante de todo este texto - pegando na estatística correspondente a um adulto saudável na casa dos trinta (60 bpm) e fazendo as contas, o meu coração, entre sístoles e diástoles, bateu 3153600 vezes. Neste número não contei com as oscilações correspondentes aos beijos, sorrisos, toques e palavras de B., que contribuíram para momentos de taquicardia e que aumentaram, largamente, este valor. 
Não sou de pedidos ou promessas para os anos vindouros. O tempo, esse, encarrega-se do seu trabalho de abrir as portas. A nós cabe escolher quais atravessar.


Pedro Rodrigues

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Natal

Ficamos nesta data
a contemplar o lugar comum do vazio
o abstracto momento
em que juntos
parecemos tão poucos
quando relembramos
os entes caídos sobre a terra
onde mais tarde, na primavera,
nascerão flores
a data cíclica repete-se
como todas as outras coisas
apenas imune ao desuso
propensa a caras festivas
mesmo que ao engano
agradeço sobre todas as coisas
mas todas as coisas são entulho
da vida, amealhado ao longo dos anos
Agradeço portanto noutros
dias quando as telecomunicações
e o mundo não estiverem entupidos de
mensagens maquilhadas.
Depois de amanhã vem o vinte e seis:
será que os votos se mantêm?

Pedro Rodrigues

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Eu não largo a tua mão, B.

Foi ela que me disse, ainda antes do nosso primeiro encontro: és muito persistente, não és? Eu sorri para o ecrã do telemóvel, enquanto pensava para mim: não sabes o quanto - acho que acabei por lho dizer, ou que sou extremamente teimoso; adiante. Uma frase, no entanto, ficou em loop, repetindo-se de forma incansável dentro da minha cabeça: “take the thing you love and make it your life.” Nessa altura ainda não a conhecia. Não sabia o que seria de nós. Mas o tempo encarregou-se de nos levar com ele e, quando dei por mim, os meus medos e os dela passeavam de mãos dadas pelo Chiado, com as luzes de Natal, como estrelas poisadas sobre todas as coisas, a iluminarem o rosto dela. Nesse momento dei por mim novamente a pensar naquela frase e de novo as minhas mãos tiveram vontade de apertar as dela. Novamente tive vontade de lhe dizer: eu também tenho medos; eu também tenho monstros que me atormentam à noite; mas quero matar os monstros contigo, ou dançar contigo entre eles. O medo é o espaço entre o limite do chão e o início do vazio. O medo: “- What if I fall?/ - What if you fly?”
Penso que é assim que as histórias de amor começam: tímidas; a medo. É a vertigem, antes do salto. 
Saltamos juntos. 
Eu não largo a tua mão. 
Palavra de honra que eu não largo a tua mão. 



Pedro Rodrigues

domingo, 16 de dezembro de 2018

A B.

Já não escrevia ébrio há um tempo. E temo que o que vai sair daqui se aparente difuso, sem um fio condutor, uma espécie de catástrofe de letras, sei lá. A verdade é que são 7:07, cheguei de uma longa noite entre amigos, copos entornados, música, risos e palavras gargalhadas. Mas tudo o que me ocupou o tempo foram os olhos dela. Os olhos dela, rasgados, antigos, como pedras ancestrais, basilares. Algo. O começo. A fundação. Os olhos dela que, aparentemente, são uma galáxia distante, algo inalcançável, mas que comigo, a olharem para mim, brilham como estrela, como uma supernova em combustão no espaço sideral. Não vos sei explicar. Sei o que vejo. Sem figuras de estilo. Ela olha-me e os olhos brilham. Nesse momento percebo: ok, estamos aqui. Mesmo depois dos meus medos. Mesmo depois dos medos dela. Eu penso: não sei o que será de nós, mas acredito. E tudo isto é demasiado vago. Demasiado pagão. Não sei. Tudo o que penso é que quero estar com ela. Contar-lhe as idiossincrasias dos meus dias - ouvir as dela. Sei lá. Tudo o que vem neste momento se aparenta difuso - como comecei. Mas é tão real. A imagem dela. Os lábios. Foda-se, os olhos. Aqueles olhos que parecem ter percorrido anos até chegarem aos meus. Estou ébrio e, dentro do perímetro craniano, tudo isto se aparentava mais poético, mais belo. Não sei o que será de nós. Mas espero que seja algo bonito: uma vida, um amor, lábios simbióticos numa eternidade quotidiana. Sei lá. Era isto que te queria dizer. Ou muito mais. Mas, para já, fica isto. E os teus olhos, e o tempo guardado num feixe de luz. Podemos adormecer dentro de um abraço? Conto que sim.
Muito, 
meu amor 


Pedro Rodrigues 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Amoras Silvestres: B.

Corro a cidade
pelas artérias 
acelerando como os litros de sangue 
que separam o coração de tudo 
o resto

E é ao ver ao longe o teu rosto que
paro, escuto, reparo
com atenção
e percebo
que a vida é um mapa
circular e que 
as estações
se sucedem
umas às outras:
começando
e terminando 

em ti                 

Pedro Rodrigues



sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

B.

não sei por onde começar
a não ser pelo início
e seguir, descendo rua abaixo
com o coração na mão
enquanto tu me ligas
ainda demoras? não gosto de esperar
o músculo cardíaco:
pericárdio que envolve tudo a que 
se convencionou chamar amor
os teus lábios
vermelho mais azul
o tom concêntrico
da mudança
ou da bonança
talvez
os teus olhos 
que navegaram desde a Pérsia
guerreando com o tempo
até chegar aos meus olhos

nas esquinas pedem esmola
eu peço um lugar para depositar 
o meu coração
uma casa, com paredes pintadas de recordações
uma casa, um abrigo, um abraço que dure mais um pouco
(só mais um pouco)
é assim que as histórias começam, não é?
pelo início
até se desenrolarem e avançarem como barcos
ao longo do mar

se quiseres, naufragamos juntos




Pedro Rodrigues 

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Do lado de dentro

Sabes
às vezes gosto de abrir
um livro
(um livro qualquer)
assim à toa
numa página aleatória
e ver se tem gente dentro
a acenar-me do outro lado

Há quem diga que ler é um acto solitário
mas eu não concordo
há sempre alguém que me dá a mão
do lado de dentro e me pede com jeitinho
para entrar

Pedro Rodrigues

sábado, 13 de outubro de 2018

O velho Casio do meu avô: dois anos depois

Olho para o teu velho Casio, agora enrolado no meu pulso: 11:01, menos cinco minutos que a hora marcada pelos outros relógios da casa. A manhã está bonita, com sol e um céu azul baço de nuvens. Tenho a janela aberta e um brisa leve levanta algumas folhas da minha secretária. À minha frente tenho uma fotografia tua em que pareces um artista daqueles de cinema dos anos 60: rosto bem delineado, cabelo grisalho penteado para trás, moreno dos dias passados no mar e no rio. Faz amanhã dois anos que partiste e faz hoje dois anos que te apertei a mão pela última vez. Ardias de febre porque, segundo os médicos, os teus órgãos começavam a desligar um a um, como as luzes da casa antes de irmos dormir. Entre choros e silêncios todos me diziam que tinhas esperado por mim para me despedir de ti. Dei-te imensos beijos. Apertei-te. Pedi para não ires. Mas acabaste por embarcar nessa viagem de onde não me têm chegado cartas. Agora chego de Lisboa e o teu lugar no sofá está desabitado, o teu lugar na mesa foi ocupado pelo pai e eu fui movido, por uma estranha força de mudança para a outra ponta, afastado dos lugares onde tantas vezes me mandavas estar quieto por te estar a fazer judiarias, onde tantas vezes sorrimos, onde tantas vezes te bati nas costas com medo que te estivesses a engasgar, onde tantas vezes te abracei, beijei, te disse “meu amigo”, “meu velhinho”. Comecei a chorar, como se tivesse guardado uma enorme tempestade cá dentro, daquelas que teimam em anunciar nos noticiários e de um momento para o outro tudo se torna água, tudo se dissolve, tudo abana e remexe. Olho novamente o relógio, amolgado e arranhado das quedas que davas - a última fatal: a última. Recordo a primeira vez que te caiu porque não o conseguias prender no pulso e todas as vezes em que depois dessa te voltei a explicar que era preciso ouvir o clique do fecho para saber que estava preso e que sem esse clique ele voltaria a cair, e tantas outras vezes, depois dessas vezes, te voltei a explicar, apanhando o pobre objecto do chão: “tens de ouvir o clique”. Agora vejo, nada disso importou, o tempo dentro do relógio engoliu-te e o que me sobrou foi esta peça prateada que desde a tua morte trago no meu pulso para contar as horas. Ao contrário de ti, que tinhas uma relação de paz com a pontualidade, eu tenho o tempo desfasado da realidade, atrasado. Se fosses vivo, certamente já teria acertado as coisas e viveria no mesmo fuso horário que tu. Agora, pouco interessa. Ainda hoje irei enfeitar o sítio onde agora o teu corpo descansa - junto do da avó Lucinda. Limparei, com a mãe, as pedras; encherei as jarras de flores vibrantes. Escrevi há uns tempos que a morte tem um sentido poético, num sítio qualquer. Talvez seja verdade. Sempre que olho para a tua imagem, as cores garridas na campa, o cheiro a flores frescas no cemitério, dou por mim a pensar que a morte se parece muito com a primavera. E de novo chove cá dentro, porque a minha primavera não mais será a tua. O canto das andorinhas terá horas diferentes, como as do teu velho Casio. Mas no que depender de mim será sempre essa estação dos recomeços: aqui, e onde quer que estejas. 
Olho novamente a tua imagem e dentro da minha cabeça, sem querer, eu abraço-te.



Pedro Rodrigues

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Outubro

Outubro
ou tu e eu embrulhados
neste outono
que cai sobre os
teus ombros
desfolhados
Outubro
Ou tu brotando
um jardim de outono
cá dentro
onde tímido
a um canto
se vai escondendo
do tempo
o nosso amor


Pedro Rodrigues

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

.

a poesia não nos salva de nada
não salvará
vai adiando o inevitável
o derradeiro impacto
com o final do abismo
a poesia é o líquido
denso que nos prolonga
a sensação da queda
nada nos salvará
o mundo um dia será pó
varrido por uma vassoura 
divina qualquer
cientistas descobriram 
que o universo afinal
não é infinito
nada se prolonga para sempre
um dia acabaremos todos 
no oblívio e ninguém se
lembrará que existiu um
tipo chamado Homero
e um herói que regressou
a casa para a sua amada
ninguém se lembrará
do varredor de ruas
que limpa sempre 
o mesmo sítio
às seis da tarde
a eternidade é
a prisão dos poetas
e de outros loucos
que não acreditam
que há uma força
mística que nos 
varrerá a todos.



Pedro Rodrigues

domingo, 30 de setembro de 2018

Poema Inútil

O que entendes tu disto
Pedro Miguel Rodrigues?
Estás a perder cabelo e 
todos sabem
ninguém conquista o mundo sem
ostentar uma farta cabeleira
olhos verdes um
sorriso de capa de revista muito
direito muito capaz de provocar
suspiros.
Ninguém conquista o mundo com
palavras. Se ficas careca estás feito
Ninguém te liga
e, no final, enforcas a tua inutilidade num poema
como este


Pedro Rodrigues



segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Revisitando Nietzsche

A palavra amor
dita do feminino
é diferente da mesma
palavra dita no masculino
é uma palavra com duas faces
com dois corpos
e que quando repetida
com as luzes apagadas
acaba por se tornar 
apenas a mímica
silêncio
um

dois pontos
não coincidem
sem se tornarem
no mesmo ponto



Pedro Rodrigues

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Intimidade

disseram-me que a intimidade
começava quando a roupa caía
como fruta madura sobre os lençóis
gastos por outros corpos
e, na verdade, eu acreditei nessa premissa
enquanto a olhava a tirar os brincos
enormes círculos dourados
sobre a cómoda branca do quarto
o gesto dela todo numa eternidade
lento, mudo, ausente
dizia-me que os brincos a incomodavam
e que não ajudavam em nada nessa partilha da intimidade
retirou a maquilhagem
o batom dos lábios avermelhava em pinceladas drásticas 
o lenço 
(por momentos julguei que queria também limpar os meus beijos)
depois a base
depois tudo o resto que não conheço
quando o vestido caiu no soalho
o meu corpo estremeceu
quando a lingerie foi projectada para um canto
o meu coração disparou
julguei ser nesse momento que começava a intimidade
e depois entrámos juntos nesse lugar onde tudo é sangue
onde tudo é suor, onde tudo são respirações, onde tudo
é orgasmo
no final olhei-a
já com a cabeça poisada na almofada
o sorriso lindíssimo como uma lua perolada
sem segredos  
sem maquilhagem, sem roupa
onde todos os limites podiam ter o nome de pele
onde todos os limites podiam ser depois da pele
percebi
a intimidade começa depois
a intimidade é tudo o que vem depois dessa fronteira


íntimos são aqueles que partilham mais que os seus corpos



Pedro Rodrigues

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Sem Título

Queria que soubesses primeiro os meus defeitos e por isso comecei pela minha rinite alérgica e a minha incapacidade de manter o nariz seco durante o início da primavera e os dias de inverno, também te tentei explicar que os tremores nas minhas mãos se devem ao nervosismo de viver e que o futebol na miudagem me entortou um pouco as pernas. Com nada disso te importaste. Sorrias crente que nada disso podias mudar, mas que com isso podias tu bem. E no fim de todos os meus receios contados à tua pessoa, pediste-me que te falasse de poemas que conhecia e da anatomia do meu coração - naquele momento taquicárdico. Deve ser assim que começam as histórias de amor. 



PedRodrigues

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O destino tem sentido de humor

abrir um velho dicionário
encontrar uma imagem de Jesus Cristo
a marcar a página, a alertar-me para 
a definição de palavras como
destrutível, destrutivo, desumanidade
desumano, desunhar, (…)
podia ser uma piada do destino
se eu acreditasse nessas coisas
(e acredito)
ir à estante, abrir um livro que deixei a meio
encontrar um postal teu de um natal passado 
a marcar a página onde fiquei
(a página onde ficámos)
a alertar-me da tua presença
a alertar-me da tua ausência
podia ser uma piada do destino
se eu acreditasse nessas coisas

e acredito



Pedro Rodrigues

terça-feira, 3 de julho de 2018

"Take the thing you love and make it your life"

A frase é de uma das minhas séries favoritas: Californication. É dita pelo amor da vida do protagonista, Hank Moody, um escritor que em muito se assemelha a uma personagem dos livros de Bukowski. 
Recordo várias vezes esta frase, quando penso na definição de romântico. Para muitos, um romântico é uma personagem mística, uma espécie de unicórnio que vê o amor em todas as coisas. Há muita gente que diz que sou uma pessoa romântica. Dizem-no tendo por base o que escrevo e criam uma imagem de um ser acima de todas as tentações, acima de tudo o que não tem as sete cores do amor. Por vezes, também me imagino assim. Costumo tentar poetizar as coisas: tornar o que vejo em poesia. Nem sempre é possível. Às vezes, ao saírem, as palavras oxidam. Tornam-se feias. 
Quando estou apaixonado gosto de escrever sobre e para a pessoa por quem me apaixonei. Nesse momento, não há este, nem oeste. Somos nós no centro e tudo o resto se torna ruído. Mas nem sempre vivemos sobre um céu azul. Há nuvens de tempestade. Há o depois. E nesse entretanto, nesse espaço vazio, há tentações em forma de gente, de palavras carinhosas, de vontades. Dou por mim, por vezes, a pensar: serei menos romântico por ceder à tentação da carne? Não creio. Estou sozinho (solteiro) há dois anos e as tentações multiplicam-se. Há quem me aborde, puxando o lado irracional, procurando apenas a minha carne. Serei pior pessoa por ceder à tentação? Por apenas ser uma contraparte numa noite de sexo? Serei menos romântico? Penso que não, porque acabarei sempre a ver o mundo pelo mesmo filtro. E escrever o mundo e o que vejo da mesma forma. 
Bukowski era, para mim, uma pessoa romântica. Apesar de muitos o classificarem como um niilista, um misoginista, para mim era uma pessoa com uma visão romântica do mundo. Acho que todos os grandes românticos da história eram - são - pessoas danificadas por dentro. Partidas. Nem todas as pessoas têm a sorte de encontrar o grande amor da sua vida à primeira tentativa. E, mesmo nos casos em que encontram à primeira, nem sempre essas pessoas ficam juntas até ao fim das suas vidas. O que é importante reter e repetir é a ideia que, no momento em que essas pessoas se encontram, no momento em que estão juntas e vivem esse amor, sejam apenas uma e a outra contra o mundo. É isso, para mim, a definição de romântico: alguém que no momento do amor, no meio de um céu cheio de estrelas, olha apenas para a lua. 

(Isto parece um daqueles textos dos gurus da auto-ajuda, mas era algo que me estava a atormentar.)



Pedro Rodrigues

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Entre a vida e a morte, eu escolho a liberdade

Vida: Princípio de existência, de força, de entusiasmo, de actividade (diz-se das pessoas e das coisas) (…)



Não querendo atirar pedras ao rio a fim de gerar ondas - maiores ou menores - este referendo em relação à eutanásia vem escarnar um dos pilares sobre os quais a nossa existência assenta: a dicotomia vida/morte. Como em muitos outros temas, as pessoas escolhem um lado ou outro, defendendo com unhas e dentes a sua posição. Os defensores do não dizem que estão do lado da vida, acusando os defensores do sim, mesmo sem o dizerem, de serem defensores da morte. Os defensores do sim dizem que estão do lado do progresso, da razão, acusando os outros, mesmo sem o dizerem, de serem seres retrógrados, defensores de um estado laico. Não é então de estranhar que nos canais de televisão, em que os debates se multiplicam que, de um lado se metam padres, defensores dos ensinamentos da igreja, do não, e do outro os médicos, defensores da ciência, do sim. Este cenário remete-me para os tempos medievais: Igreja vs Ciência. 
No centro de todo este imbróglio, porém, está aquela que, para mim, é a questão central: a liberdade de escolha. 
A despenalização da eutanásia não é a abertura das câmaras de gás de Hitler (perdoem a analogia). Não vamos, com isto, criar um monstro. Não vamos matar as pessoas de início porque estão doentes. Não. Caso a pessoa esteja num estado de agonia tão grande que viver se torne um martírio, que cada minuto de vida seja mais uma súplica que a morte chegue, de tão grande o sofrimento, VAMOS DAR-LHE A LIBERDADE DE ESCOLHER. Isto poderá parecer uma enorme afronta ao não, mas não é. Pensemos a um nível elementar: qualquer célula luta pela sobrevivência. A sua formatação é essa. Sendo nós conjuntos de células, qualquer um de nós luta por sobreviver. A vida é uma escolha que fazemos inconscientemente*. Mas sendo nós seres conscientes, com capacidade para sentir, com capacidade cognitiva para perceber que a morte é inevitável, não devemos nós, enquanto seres conscientes, cientes do inevitável fim, vivendo num estado de agonia tão grande devido às falhas do nosso organismo, ter a possibilidade de escolher? Isto não é ser pró-vida, ou pró-morte. É ser livre. 


*Neste ponto poderiam referir a elevada taxa de suicídios que existe. Mas essa taxa é criada por distúrbios do foro psicológico, não fisiológico. E a questão na eutanásia remete-nos para distúrbios fisiológicos do corpo humano, e não psicológicos. Não confundamos as coisas. 

Pedro Rodrigues

sábado, 28 de abril de 2018

Ofélia

Quando me perguntam, em jeito belicoso
como te atreves a falar de amor?
como se eu fosse louco
logo a mim
eu, que não gosto de confrontos
com outros que não comigo
logo a mim
eu, que me calo e me fecho no manicómio
que é o meu corpo
(ou o que é para lá do meu corpo)
e rio
e esbracejo
e esperneio
e olho do fundo do hospício
onde habito com todos os meus monstros
eu, que me pergunto
não devemos falar de amor?
não devemos calar de amor?
hei-de morrer louco,
logo eu
que nunca soube viver as coisas de outra forma
que não até ao limiar da loucura
(especialmente o amor)

Pedro Rodrigues

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Terra à vista

Depois de esvaziares
a casa
quis uma forma
de esvaziar também
a minha mente
e fechei-te entre
capa e contracapa
centenas de páginas
como toneladas de entulho
depois de as paredes colapsarem

fechei-te lá dentro
como quem fecha o sol
numa caixa de cartão
alheio ao facto que o sol
não cabe numa caixa de cartão
alheio ao facto que as feridas de amor
não deixam de doer por mais que as escondamos no papel ou no sorriso
alheio ao facto que tudo se sucede e se desmancha
como, enfim, o mar ao encontrar um pedaço de terra

Pedro Rodrigues

744


Um miúdo, de sete ou oito anos, em conversa com o pai:

Pai porque é que os autocarros vão de um lado para o outro?
Porque é assim que funcionam as linhas de autocarros. Uns vão, outros vêm… A linha de autocarro une dois pontos: um de partida, outro de chegada.
- Então é como a vida…


Pedro Rodrigues

sem título

O meu avô, sempre que comia chocolates:
deixa-me cá comer mais um, que para amarga já basta a vida.



Pedro Rodrigues

Flores

Malmequeres
(e isso já quer dizer tanto)



PedRodrigues

quinta-feira, 19 de abril de 2018

O primeiro passo é um acto de coragem

eu paro
tu paras
eu olho
tu olhas
eu gosto
tu gostas
nenhum de nós 
se decide

e o tempo avança
e o mundo gira
e nós parados
eu aqui
tu aí

e pensamos
depois
eu aqui
tu aí
(não sei onde
sei lá eu onde)
o que seria
se um de nós
tivesse dado
o primeiro passo

Pedro Rodrigues

702

Ouvido no autocarro.
Dito por uma senhora de meia idade:

Os pobres é que carregam os sacos dos ricos.

PedRodrigues

sábado, 14 de abril de 2018

Pelo pulso

ao olhar 
o velho 
CASIO
que outrora 
fora
do meu avô
percebi:
o relógio
não te dá 
as horas

tira-tas 

PedRodrigues

sexta-feira, 13 de abril de 2018

era - e é

construímos passados 
como quem ergue muros
e deixamos do lado de lá
o que ainda existe
embora gostássemos que
já não existisse
mas a memória
cria fantasmas 
que continuam 
a atravessar essas barreiras
e nos assombram
quando o mundo se cala
quando as luzes se 
apagam
quando enfim
voltamos a ficar 
sozinhos

e tu não eras: continuas a ser


PedRodrigues

758

Ouvido no autocarro,
dito por um senhor de muletas:

- A vida é assim: passa-se depressa.


PedRodrigues

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Lisboa, 22:13

Sabes o que me chateia?
chateia-me que as pessoas não tenham cuidado com nada
nem com as ruas
nem com as estradas molhadas
nem com a possibilidade de cheias
nem com a impossibilidade da eternidade
nem com as outras pessoas
O descuido é uma forma de esquecimento
e chateia-me de morte que se esqueçam de mim



PedRodrigues