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sábado, 22 de outubro de 2011

Poema número trinta e dois

Triste fado dos mendigos

Sentado no escuro
Uma garrafa na mão
Um gato no muro
Uma faca no chão
Um cão vadio
A roer um osso
Um gole da água
Do fundo do poço
Uma dor de cabeça
Em cada esquina
Ou apenas o grito
Duma puta mais fina
Um salto a pisar
O meu coração
Tiraram-me o osso
Mataram o cão
No fundo do poço
Só há absinto
Pobre de mim
Só gosto de tinto
Sentado no escuro
De garrafa vazia:
O cão não ladra,
O gato não mia.
E eu sozinho
A desesperar
Enquanto a morte
Tarda em chegar.
Faltam-me as forças
Falta-me o pão
Já nem para as putas
Tenho um tostão
Hoje sou mendigo,
Ontem era patrão
Tiraram-me tudo
Menos o chão.
Sentado no escuro
Sem nunca perecer
Sou fã da morte
Até um dia morrer
Que venha depressa
Mas, hoje, não
Eu até tenho a faca
Só me falta o coração.

PedRodrigues

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Última carta a todos os que me amam

"Os bons vão sempre primeiro. Até um dia, amigos."


A todos os que me amam:

Não deixem de me amar. Mesmo que o meu coração deixe de bater e o meu corpo comece a gelar. Peço-vos: não deixem de me amar.
Não sei para onde vou. O meu coração começa a desvanecer. Não vejo nenhuma luz. Sempre me disseram que havia uma luz. Mentiram. Sinto a cabeça a cair. As minhas mãos estão dormentes. Não vejo nada a não ser um nevoeiro. Cada vez mais denso, cada vez mais gelado. Não sei para onde vou. Sei que nunca mais vou sentir a areia nos pés. Ou uma simples brisa de verão na cara. Tenho pena.  Nunca mais vou mergulhar no mar. Nunca mais lhe vou sentir o toque gélido das marés de inverno. Apenas este frio miudinho que me vai roendo as entranhas. Cada vez mais intenso. Cada vez mais incomodativo. Também me disseram que a minha vida me ia passar à frente dos olhos, como um filme à velocidade de um avião a jacto. Nada. Apenas este nevoeiro. Um manto turvo à frente dos olhos e o corpo cada vez mais dormente. Já nem sei a que cheiram os ramos de jasmim do quintal dos meus avós. Gostava de os cheirar uma última vez. Faltou-me o tempo para os cheirar. Faltaram-me as gavetas na memória para guardar o cheiro. Neste momento, faz-me falta. Não sinto nada. Nem o cheiro da gasolina. Nem o cheiro do asfalto quente. E os ramos de jasmim ficaram perdidos no tempo. Numa moldura que guardei no cimo de uma cómoda sem gavetas. Faltou-me o tempo. Faltaram-me as horas, os minutos, os segundos. Não guardei nada na memória. Apenas as imagens dos melhores momentos. Das pessoas mais queridas. Daqueles que me amam. É em vocês que me vou abraçando. Às vossas molduras, na procura de um bocadinho de calor que me aqueça. Ou de uma mão que me guie pelo nevoeiro.
Não chorem por mim. Não beijem a fotografia da minha lápide em busca de conforto. Não sei para onde vou, mas se a alma existe, imagino que prossiga com a minha vida – ainda que de uma forma imaterial. Não vos vou poder confortar. Vou-vos abraçar. Acreditem que vou. Não vão sentir-me. Não vão conseguir me ver. Apenas um friozinho na barriga e uma sensação de desconforto enquanto as lágrimas vos vão caindo dos olhos em quantidades industriais. Não chorem por mim. Apenas me vão matar mais um bocadinho. Metam flores na minha campa. Nunca fui grande amante de flores, mas metam-nas, de qualquer forma. Enfeitem o local para que fique mais alegre. Para que vos ajude a sorrir. Guardem uma lágrima em cada pétala e não chorem.
Não olhem para o céu à minha procura nas estrelas. Não sei para onde vou, mas nunca fui astronauta. Sempre sonhei em voar – quem não sonhou? Mas nunca quis ser um pássaro. Não acredito que ganhe asas, ou que, num passo de magia, ganhe a habilidade de levitar. Olhem para o mar e imaginem-me lá. Não precisam de imaginar. Eu lá estarei: no meio das ondas. A tentar provar uma última vez o travo salgado do oceano. A nadar com os peixes, como um dia sonhei. Juntem-se a mim. Sentem-se ao meu lado na areia. A rir às gargalhadas como antigamente. A lembrarem-me. A recordar cada tropelia de quando estávamos juntos e felizes. A sentir uma ligeira brisa de verão na cara. Uma ligeira brisa de verão. Como esta que agora me bate na cara. O meu corpo cada vez mais dormente. O nevoeiro cada vez mais denso. O frio cada vez mais gelado. Um inverno em mim.
Sinto-me a desaparecer. Uma folhinha de uma árvore outonal a ser levada pelo vento. Está na hora. Faltou-me o tempo. Faltaram-me os travões. A parede não se desviou e limitou-me a eternidade. Agora, sou um pedaço de inverno a gelar a cada minuto que passa. Não sinto o cheiro e não me lembro de como cheiravam os ramos de jasmim do quintal dos meus avós. Só vos peço: não deixem de me amar. Não me esqueçam. Não sei para onde vou, mas tenho para mim que se seguirem o vento acabarão por me encontrar: a chapinar numa poça enquanto sonho com um último mergulho, que nunca dei, no mar.

PedRodrigues

(Crónica da edição de Fevereiro/Março da revista Algarve Mais)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Olá Lisboa


Olá Lisboa,

Regressei no mesmo comboio que me levou até ti. Parecia-me o mesmo, mas sinceramente não sei se seria o mesmo. Desembarquei na estação de Santa Apolónia. Está diferente desde a última vez que lá tinha estado. Mais moderna. A acompanhar a evolução dos tempos. Estava de noite quando cheguei e tu estavas linda vestida pelo brilho das luzes.
Apanhei um táxi até casa e a caminho fui revisitando alguns locais que me tinham sido apagados da memória. Continuas igual. As pinturas nos murais erodidos pelo tempo continuam a colorir-te da forma mais jovial possível. As casas continuam a transpirar tradição e até o musgo lhes continua a acentuar uma impetuosidade que poderia ter sido esquecida pelo tempo. Cada paralelo continua a ecoar nas rodas da mesma forma; e os barulhos das pessoas, dos carros e de toda a tua correria continuam a ter a mesma delicadeza. O Marquês continua a olhar para o rio, a desdenhar cada passo de quem se desloca pela Avenida da Liberdade. O Chiado e o Rossio continuam a ser a passerelle de todo o tipo de almas – mesmo das vazias. Continuam a  ser o local de trabalho dos artistas de rua, aspirantes a Jimmy Page - não fosse ter falhado a tal nota no momento certo, ou o toque de Midas na guitarra - que vão dedilhando uma Stairway to Heaven capaz de dar luta à original. Enquanto os turistas – só os turistas – lhes vão atirando uma moeda que andava a fazer peso no bolso e os vão guardando nas máquinas fotográficas, para mais tarde recordar – ou para dizer que estiveram a um metro de um quase Jimmy Page, em Portugal. Os cafés continuam cheios. Não há cadeiras vazias. Sentei-me algures na praça do Chiado a beber uma água. Procurei-me em cada rua. E enquanto me procurava dei por mim a admirar um Fernando Pessoa imaginário: a bebericar num cálice de absinto, ao mesmo tempo que escrevia uma ode a cada pedra da calçada. Apertei-lhe a mão e pedi-lhe cinco minutos de conversa. Ignorou-me e continuou a escrever. Eis o teu efeito em nós, Lisboa. És absorvente. Deve ser por isso que também te escrevo, ignorando tudo o resto.
No meio da minha jornada pelas tuas ruas entendi-te como uma cidade de extremos. A dicotomia entre classes sociais é visível a metros de distância. Mas não és menos elegante por isso. Até os mendigos exibem maior classe que muitas das senhoras que passeiam quilos de ouro pela calçada em cima dos seus sapatos de salto-alto. (Embora saiba que não há elegância nenhuma em mendigar por comida, ou abrigo, tenho para mim que quem mendiga por amor, ou apenas por uma pequena gota de altruísmo acaba por tocar no fundo do poço primeiro.) Isto és tu Lisboa. Um caldeirão onde se misturam raças e estratos sociais. Onde há, realmente, de tudo. Onde uma moeda pode ser a ajuda para o pão do dia, ou para a dose de mais uma noite, enquanto a ressaca não bate à porta - sei que nisto és só mais uma, infelizmente.
Lisboa vou-te ser sincero: não conheço o mundo - umas viagenzitas, nada de especial. Mas acredito que sejas única. Acredito que és a única que consegue juntar o passado com o presente de uma forma tão subtil que quase ninguém nota. Juntas a nostalgia dos eléctricos antigos, aqueles “comboios pequeninos” - como dizia quando era mais novo – e o modernismo das estações de metro. A delicadeza de cada edifício que transpira anos de história e o design futurista de tantos outros. Lisboa: tu és Camões; és Pessoa; és Marquês de Pombal; és Amália; és D. José e D. Duarte; não és francesa, és bem portuguesa. Continuas a cheirar a Lisboa em cada átrio de entrada. Não sei explicar-te a que cheiras, não lhe distingo nenhum aroma conhecido. Cheiras apenas a Lisboa – e como eu gosto do teu cheiro.
Parto no mesmo comboio que me trouxe até ti. Santa Apolónia agora está igual. Fica apenas a sensação de que parto sem ter-te conhecido como mereces. Com a sensação de que me falta algum bocado - falta-me sempre algum bocado. Ainda é de dia e o Tejo reflecte a tua imagem nas suas águas. Parto com aquele bichinho no corpo. Infelizmente não há postais que te guardem como és - nem fotografias, nem textos. Ninguém consegue levar-te no bolso. Eu trago-te na memória com a esperança de um dia - em breve? - voltar. Até já, Lisboa!

PedRodrigues

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O amor não é um palco

-O que tens?

Ela parecia-me distante. Um imenso espaço em branco entre nós. A fugir aos meus toques. Sem reagir às minhas carícias. Sem me beijar. Nem um pequeno toque nos dedos. Um abraço com o olhar. Nada.

-Estou cansada.

No fundo eu sabia ser verdade. Agora que nos víamos separados por uma distância física que não conseguimos vencer, ela tem percorrido quilómetros para me ver. A distância também cansa.

-Vamos para casa.

A caminho do táxi: cada um para o seu lado. Os passos sem sintonia. Um à frente do outro, sem dar as mãos – nunca damos as mãos na rua. Damos, mas por pouco tempo. Demonstramos o nosso afecto sem exageros. Sem tornar a nossa relação penosa para quem está à nossa volta. De certa forma, não ligamos a convenções. Não amamos para o público. O amor não é um palco.
Entrámos no táxi sem nunca nos tocarmos. Separados por uma cerca invisível que teimava em se meter entre nós. Enquanto ela olhava pela janela, eu olhava para o espaço em branco que nos separava. Procurava saltar a tal cerca que teimava em ser um entrave entre nós. Eu com os olhos postos no espaço em branco. Ela olhar os semáforos pela janela. A ver enquanto mudavam de cor. Uma luz verde que teimava em não aparecer. Não só no semáforo, também entre nós. Uma estrela cadente que ela ia procurando no céu. Talvez. Digo eu, que me sentia perdido no buraco negro que era o espaço em branco. A desesperar pela luz verde que teimava em não aparecer. Um

-Dá-me agora a mão que a luz está verde

A passear pela minha cabeça. Eu a olhar para o espaço em branco. E enquanto olhava para o espaço em branco que me separava dela, ia olhando para um letreiro colado no vidro: “Proibido fumar”. Nos espaços entre os meus dedos, os dedos dela pareciam fugir-me – ou fugiam-me realmente – e eu ansiava por aquele cigarro que nunca fumei. Aquele que me ia salvar do nervosismo da indecisão. Da negligência de um olhar que teimava em não aparecer. Seriam as estrelas mais interessantes que eu? Onde estava eu, realmente? Sentia-me pequeno. Verdadeiramente pequeno. Afinal o semáforo nunca passou do vermelho. Afinal as estrelas são mais importantes que eu. Engraçado…
O taxista parou a vinte metros do meu prédio. No caminho entre o táxi e a entrada, o silêncio era só silêncio nada mais. Ela fugia de mim. Eu olhava para ela, à velocidade da luz, e deixava-a fugir. Talvez a minha masculinidade a falar mais alto. Talvez algo mais. Eu a olhar para o outro lado dela. A ver como nunca ninguém quer ver ninguém.

(Nunca ninguém quer ver ninguém assim, acreditem.)

 Ela sem me dar a mão. Sem me dar o rosto. Nem os lábios. Apenas os lábios. Nada. No elevador uma falésia entre nós. Algo que nos separava. Uma parede. Não sei. Sei que nem uma palavra, nem um sorriso, nem um gesto. Sei que entrámos em casa, em direcção ao quarto, e nem um “Boa noite”. Nada. Deitou-se - no lado dela que não sei se me pertence. Na mão dela, sem ninguém a chatear. A negligenciar a minha vontade. Talvez não. Na minha cabeça, a negligência é apenas cansaço. Apenas cansaço. No entretanto, lá vai fechando os olhos do lado dela, a namorar com a parede, – ou com o meu "eu" dos sonhos dela  – enquanto eu me vou desdobrando nesta busca pelas palavras que descrevem os espaços em branco que teimam em nos separar. A pensar que ninguém ama como quer, mas como pode - como li algures: “Mesmo que não te amem como tu queres, não quer dizer que não te amem com tudo o que têm.” Eu que acredito que existam várias definições para o verbo “amar”. No entanto, acredito que, todas elas partilham o mesmo núcleo. Para mim, “amar” é tão simples como isto: é dar a mão a alguém e nunca a largar. É desfrutar cada momento com essa pessoa, na saúde e na doença. É ser feliz no meio de cada imperfeição, porque convenhamos: o mundo não é um sítio perfeito. Para mim, amamos de mãos dadas.

-Dá-me a tua mão e vamos ser alguém

Um murmúrio

-A vida é feita para nós

A cantarolar de mãos dadas. Nunca na rua. Por vezes na rua. Sem plateias. O amor nunca foi um palco. E é quando passamos do amor ao teatro que nos vamos magoando. O amor não é um palco.

-Um beijo. Beija-me agora que não está ninguém a ver.

Ela a pensar em voz alta

-Tens vergonha de mim?

Eu a olhar nos olhos dela. Uma tristeza tão pequenina a chorar atrás dos olhos, bem lá no fundo.

-O amor não é um palco.

Ela vazia. Eu

-Beija-me agora que estão todos a olhar. Mas não lhes dês o prazer das palmas. Imagina-nos sozinhos.

A dar-lhe a mão. A dar-lhe a mão para o bem ou para o mal. A amar.

-Vês? O amor não é um palco.

E, se o amor fosse um palco, ela não me tinha abraçado o peito, serena, a dormir. Enquanto eu vou escrevendo sobre os espaços em branco que um dia deixaram de nos separar.

PedRodrigues