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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Última carta a todos os que me amam

"Os bons vão sempre primeiro. Até um dia, amigos."


A todos os que me amam:

Não deixem de me amar. Mesmo que o meu coração deixe de bater e o meu corpo comece a gelar. Peço-vos: não deixem de me amar.
Não sei para onde vou. O meu coração começa a desvanecer. Não vejo nenhuma luz. Sempre me disseram que havia uma luz. Mentiram. Sinto a cabeça a cair. As minhas mãos estão dormentes. Não vejo nada a não ser um nevoeiro. Cada vez mais denso, cada vez mais gelado. Não sei para onde vou. Sei que nunca mais vou sentir a areia nos pés. Ou uma simples brisa de verão na cara. Tenho pena.  Nunca mais vou mergulhar no mar. Nunca mais lhe vou sentir o toque gélido das marés de inverno. Apenas este frio miudinho que me vai roendo as entranhas. Cada vez mais intenso. Cada vez mais incomodativo. Também me disseram que a minha vida me ia passar à frente dos olhos, como um filme à velocidade de um avião a jacto. Nada. Apenas este nevoeiro. Um manto turvo à frente dos olhos e o corpo cada vez mais dormente. Já nem sei a que cheiram os ramos de jasmim do quintal dos meus avós. Gostava de os cheirar uma última vez. Faltou-me o tempo para os cheirar. Faltaram-me as gavetas na memória para guardar o cheiro. Neste momento, faz-me falta. Não sinto nada. Nem o cheiro da gasolina. Nem o cheiro do asfalto quente. E os ramos de jasmim ficaram perdidos no tempo. Numa moldura que guardei no cimo de uma cómoda sem gavetas. Faltou-me o tempo. Faltaram-me as horas, os minutos, os segundos. Não guardei nada na memória. Apenas as imagens dos melhores momentos. Das pessoas mais queridas. Daqueles que me amam. É em vocês que me vou abraçando. Às vossas molduras, na procura de um bocadinho de calor que me aqueça. Ou de uma mão que me guie pelo nevoeiro.
Não chorem por mim. Não beijem a fotografia da minha lápide em busca de conforto. Não sei para onde vou, mas se a alma existe, imagino que prossiga com a minha vida – ainda que de uma forma imaterial. Não vos vou poder confortar. Vou-vos abraçar. Acreditem que vou. Não vão sentir-me. Não vão conseguir me ver. Apenas um friozinho na barriga e uma sensação de desconforto enquanto as lágrimas vos vão caindo dos olhos em quantidades industriais. Não chorem por mim. Apenas me vão matar mais um bocadinho. Metam flores na minha campa. Nunca fui grande amante de flores, mas metam-nas, de qualquer forma. Enfeitem o local para que fique mais alegre. Para que vos ajude a sorrir. Guardem uma lágrima em cada pétala e não chorem.
Não olhem para o céu à minha procura nas estrelas. Não sei para onde vou, mas nunca fui astronauta. Sempre sonhei em voar – quem não sonhou? Mas nunca quis ser um pássaro. Não acredito que ganhe asas, ou que, num passo de magia, ganhe a habilidade de levitar. Olhem para o mar e imaginem-me lá. Não precisam de imaginar. Eu lá estarei: no meio das ondas. A tentar provar uma última vez o travo salgado do oceano. A nadar com os peixes, como um dia sonhei. Juntem-se a mim. Sentem-se ao meu lado na areia. A rir às gargalhadas como antigamente. A lembrarem-me. A recordar cada tropelia de quando estávamos juntos e felizes. A sentir uma ligeira brisa de verão na cara. Uma ligeira brisa de verão. Como esta que agora me bate na cara. O meu corpo cada vez mais dormente. O nevoeiro cada vez mais denso. O frio cada vez mais gelado. Um inverno em mim.
Sinto-me a desaparecer. Uma folhinha de uma árvore outonal a ser levada pelo vento. Está na hora. Faltou-me o tempo. Faltaram-me os travões. A parede não se desviou e limitou-me a eternidade. Agora, sou um pedaço de inverno a gelar a cada minuto que passa. Não sinto o cheiro e não me lembro de como cheiravam os ramos de jasmim do quintal dos meus avós. Só vos peço: não deixem de me amar. Não me esqueçam. Não sei para onde vou, mas tenho para mim que se seguirem o vento acabarão por me encontrar: a chapinar numa poça enquanto sonho com um último mergulho, que nunca dei, no mar.

PedRodrigues

(Crónica da edição de Fevereiro/Março da revista Algarve Mais)

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