Tinha dez anos quando entrei, pela primeira vez, no consultório. Havia uma marquesa do lado direito e um lavatório no canto do lado esquerdo. Nunca entendi muito bem a finalidade dos dois objectos. Ali estavam, naquela sala, intocáveis. As paredes eram verdes. Não eram verdes como o verde. Tinham outro tom. Estavam no limiar entre o verde e outra cor qualquer. Nunca entendi a cor das paredes. Havia também um quadro na parede, em frente às cadeiras onde eu e a minha mãe nos sentávamos. Não me lembro dos desenhos do quadro. Ficava por cima da cabeça do senhor doutor e às vezes funcionava como escape daquela sala que eu não entendia.
As consultas começavam sempre da mesma maneira: primeiro entrava a minha mãe. Contava ao doutor o que lhe ia na alma, enquanto eu ficava sentado numa cadeira do hall de entrada, a olhar o corrimão e as escadas de madeira que iam sendo consumidas pelas térmitas e pelo tempo. Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez que me sentei naquela cadeira à espera da minha mãe. Imaginava, ao meu jeito de miúdo, os desabafos dela dentro do consultório:
- Sabe senhor doutor, eu acho que o meu filho é louco…
Enquanto um mar de lágrimas lhe afogava as palavras. Ela a engasgar-se a cada frase enquanto o senhor doutor lhe estendia um lenço branco e a confortava
-Ora, ora Maria José…
Eu nunca me achei maluco. Nunca fui doido varrido como muitos dos meus colegas, que não tinham medo de nada. Ao contrário deles, eu pensava cada acção até ao mais ínfimo pormenor. Cada passo era calculado. Talvez essa fosse a minha loucura. Não levava a infância como devia ser levada: sem pensar nas consequências.
(As palavras que tinha ouvido uma vez, da boca do meu avô, a martelarem-me na cabeça:
- De parvo e de louco, todos temos um pouco!)
O cheiro do éter misturado com o cheiro da madeira antiga começava a apossar-se de mim. Fechei os olhos por instantes, apenas por instantes. A porta do consultório abriu-se. A minha mãe chamou-me. Nem sinais de uma lágrima desdenhosa nos olhos. Nada. Estava igual. Era a mesma figura que tinha entrado, minutos antes, no consultório.
- É a tua vez, Pedro…
Eu
- Tenho medo, mãe…
Ela
- Vais só conversar com o senhor doutor.
As paredes quase verdes olhavam para mim, a marquesa olhava para mim, o lavatório olhava para mim, as cadeiras olhavam para mim, eu olhava o quadro e tentava fugir dali, o doutor estendeu-me a mão
- Olá Pedro! Estás bom?
Eu retribui o gesto, mas calei-me por alguns segundos. Pensava tratar-se de uma pergunta retórica, embora naquele tempo não soubesse o que isso era. Mas se o senhor doutor era médico, devia saber que para ali estar, eu não estava bem.
- O que te traz por cá?
Passei uma hora a falar com o senhor doutor. De certa forma, no meio daquela sala tão estranha ele era a única coisa normal. Ainda hoje me questiono como terá conseguido passar por mim, para dentro de mim, da minha cabeça, sem que me tenha apercebido. Não sei se terá sido pela figura serena dele, sentado na cadeira de forma descontraída mas com classe, com as pontas dos dedos de ambas as mãos, a tocarem-se de forma subtil (nos momentos em que não estava a rabiscar umas frases, ou a fazer pequenos desenhos que não entendia, no papel). Não sei se terão sido os olhos atrás das lentes dos óculos em tons de dourado que me penetraram a alma e me sacaram todos os segredos – mesmo os mais obscuros. Ainda hoje não sei o que terá sido, mas sinto-me feliz que tenha conseguido. A minha mãe também.
No final da consulta o senhor doutor receitou-me o que eu entendia como a cura para as pequenas depressões. Não que fosse exactamente assim que eu pensava que as coisas funcionavam. Não que este fosse realmente o nome que dava à minha condição: uma pequena depressão. Mas a cura para as minhas tristezas, as minhas inseguranças e os meus medos vinha numa caixa (ou em várias) em trinta pequenas doses. Pequenos doces mágicos que faziam o mundo parecer um sítio bonito e a vida uma virtude extraordinária. Ainda hoje, ao escrever isto, guardo pela casa os mesmos doces mágicos. Não os mesmos, mas a versão para pessoas crescidas.
Faz hoje precisamente dois anos que não vejo o senhor doutor. Sinto-me bem. Por um lado tenho saudades de falar com ele. Hoje talvez lhe perguntasse como é que ele consegue manter a barba tão certinha e qual o segredo dos doutores para se vestirem como doutores. Hoje não uso os doces mágicos – mentira. Às vezes uso para adormecer. Nos dias em que as insónias me complicam a vida e o travão de mão do meu cérebro deixa de funcionar. Apenas em SOS. Hoje já não penso na minha mãe
-Tenho um filho louco, senhor doutor…
A chorar no consultório como se eu tivesse uma doença incurável. Hoje
- De parvo e de louco, também eu tenho um pouco.
Ela ri-se para mim por saber que no meio da minha loucura eu sou especial. E é esta minha normalidade - um pouco anormal - que me torna especial. Hoje os degraus devem estar a milímetros de partir: o tempo e as térmitas não perdoam. Hoje o consultório, aquele sítio tão incompreensível, deve continuar a acolher crianças de dez anos com pequenas depressões. Dê-lhes os doces mágicos, senhor doutor. De parvos e de loucos, cada vez temos menos (mas cada vez parecemos mais).
PedRodrigues
acho entrei no consultorio, enquanto lia :o
ResponderEliminarmas n sei dos doces magicos :/
acho q enquanto lia entrava nesse tal consultorio :o , mas n sei dos doces magicos...:/
ResponderEliminar)
ResponderEliminar