Passavam trinta e nove minutos das três, quando ela me ligou. Um dia tinha-me dito
“O meu telemóvel não liga para pessoas como tu”
Respeitei, mas não acreditei. Nunca gostei de falar ao telefone. Não gosto da ideia de estar a falar para uma pessoa sem a estar a ver. Apesar de gostar de falar com as paredes de vez em quando – são excelentes ouvintes, acreditem – não gosto da ideia de estar a falar sozinho de um lado, sem saber o que se passa do outro. Daí nunca me ter importado com a falta de chamadas dela. Não nos faltam Bíblias de mensagens escritas, – nisso sou realmente bom – nunca nos faltam as palavras: pequenos espaços de silêncio só para aguçar o próximo tema. Nunca nos faltam temas. Lá vamos inventando histórias e pequenos conflitos para que a monotonia não venha mostrar-nos a cara. Nunca mostrou.
Ela é um desafio. De facto, desde a minha última namorada que não me sentia assim tão desafiado. Peço desculpa a todas as outras. Mesmo as mais bonitas me aborreciam. Infelizmente para elas, nunca quis um museu com pernas. Não vou mentir: gosto da cobiça alheia. Mas, para mim, até a beleza oca perde a sua piada. Uma garrafa sem o seu conteúdo é só uma garrafa - por muito bonita que seja. Ela não é assim. Consegue-me fazer rir das formas mais inesperadas. Nunca segue o guião e, apesar de ir descobrindo algumas deixas, lá me vai surpreendendo: frase sim, frase não. Tem ataques de histeria nos momentos mais inoportunos e nas situações mais fora do contexto que posso imaginar. De certa forma, ela tem algo que eu não tenho: coragem. No meio dessa falha lá nos vai faltando o último passo. O derradeiro passo que nos levará ao próximo nível – seja ele qual for. Lá nos vamos abraçando. Lá nos vamos tocando. Lá nos vamos misturando um no outro. Dando um beijo no braço, outro beijo no pescoço, uma lambidela na cara, ou um suspiro na nuca… Falta sempre coragem para o último acto. E assim vamos perdendo-nos no corpo um do outro. Beijando-nos em pensamento enquanto a coragem vai faltando a ambos. Ninguém quer arriscar, visto que ninguém gosta de perder.
Ela lá me vai dizendo:
“Detesto-te”
Enquanto eu vou respondendo
“No entanto, aqui estás tu”
(Uma gargalhada estridente)
“Tenho pena de ti. Ninguém gosta de ti”
Eu não me deixo ficar
“Se não gostasses, não vinhas ao meu encontro”
E lá nos vamos mutilando um ao outro. Cortando-nos pouco a pouco com palavras. Enquanto nas nossas cabeças nos vamos beijando intensamente – cada vez mais. Lá nos vai faltando a coragem, mas nunca as palavras. Lá vamos inventando assuntos nos espaços em branco. Pequenas picardias que avivem a chama – enquanto o fogo na cabeça e no corpo é cada vez maior. Lá nos vai faltando o último passo. Lá vou eu imaginando: e quando o último passo chegar, será que ela perde a sua piada?
(Espero que não)
PedRodrigues
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