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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O que os meus olhos vêem quando olho para ti

Lembro-me da Sofia na varanda a pintar o sol numa tela. Conseguia captar-lhe a alma, como se falasse com ele, como se soubesse que o nome do sol não é Sol, como se soubesse todos os seus segredos. Sempre a conheci assim. Sempre teve uma capacidade inexplicável de ler as pessoas, de sentir as coisas, de falar com o abstracto, uma habilidade incrível de me despir, de me desarmar, de me amar de olhos fechados. Ao passo que eu sempre me senti miudinho ao pé dela. Dava-lhe a mão à espera de sentir o que ela sentia, de amar o que ela amava. Olhava para ela e tentava ver-me na luz dos olhos dela, tentava ver as coisas com os olhos dela. Por vezes, ensinava-me a amá-la, à socapa, sem eu entender. Dizia-me

-Vês?

Baixinho, ao ouvido. Não via. Fingia uma e outra vez e acabava por errar novamente. Enquanto ela continuava com a lição, repetia a matéria, ensinava-me: sinais atrás de sinais. Então, um sorriso. Novamente

-Vês?

(-Agora vejo)

Numa calma tão leve como o ar, numa luz tão quente como a luz do sol. Dançava com as horas, dançava com os ponteiros do relógio ao sabor das horas. Até que um dia deixou de dançar. Encostou-se a um canto da casa, dobrada sobre si mesma. As janelas fecharam-se, as portas fecharam-se, as luzes fecharam-se, ela fechou-se. Desapareceu. Ficou tão pequena que desapareceu. A minha mão na mão dela e ela não crescia. Os olhos dela deixaram de ser olhos, um poço de lágrimas que desciam em cascata pelo pescoço, gemidos e gritos entre gritos e gemidos. Ela dobrada sobre si mesma a baloiçar. Onde estava o vento que a fazia baloiçar? Fitava o chão à procura do cotão perdido pelo soalho, a ver as migalhas nas alcatifas. Será que ela via as migalhas nas alcatifas? Uma dose de anti-depressivos e ela adormecia. Encaracolada na cama até começar a espernear com os pesadelos. A boca descolorada, branca dos depósitos de saliva das palavras que pronunciava baixinho. Será que me dizia

-Vês?

Eu via, mas era como se não visse. Nunca consegui partilhar da habilidade dela. Não via. Ela baloiçava e eu não via, ela pedia a morte e eu não ouvia, ela chorava e eu perguntava-me de onde vinham as lágrimas, até que o Natal chegou e eu saí de casa em busca de respostas, ou de algo que trouxesse a luz de volta. Vagueei pelas ruas entre mendigos e pescadores de ilusões. Vi a capacidade de amar que as pessoas desenvolvem nesta altura. No Natal amamos de uma forma desumana, gastamos todas as calorias que vamos recolhendo ao longo do ano. O nosso coração deixa de funcionar a trinta por cento e amamos: amamos com o coração, com os pulmões, com o estômago. Encontramos uma luz em nós que se apaga em todos os outros dias, o sol que brilha com essa luz reflecte-se numa ténue vidraça que nos separa do nosso próprio cinismo. Se fossemos verdadeiramente formatados para amar de uma maneira incondicional, essa luz nunca se apagaria. No entanto, sofremos em silêncio, num vazio que nos consome, numa escuridão imensa - como a escuridão nos olhos da Sofia - à procura de uma luz que só se acende uma vez por ano. Vamos amando por obrigação. Porque se não amarmos, não somos amados, se não formos amados estaremos condenados a partilhar o nosso vazio connosco mesmos, e a escuridão parece mais pequena quando é partilhada com alguém. Tocamos uns nos outros à procura de uma mão que nos guie. Se essa mão não chega: paramos. Somos estátuas de pedra numa fonte onde o sol não brilha, à espera de uma esmola que nos liberte da solidão. E então, o que faremos quando o pouco se tornar insuficiente? O que faremos quando o pouco se extinguir? O que nos fará continuar? Pergunto-me se a Sofia não esperará pela minha esmola. Nunca a soube ler como ela a mim. Ainda a vejo no escuro a olhar-me de soslaio

-Vês?

(-Afinal o que queres que veja? Penso para mim)

Custa-me ser maior que tu. Juro que me custa ser maior que tu. Tenho saudades de quando era eu a sentar-me no escuro a baloiçar com o vazio da casa, de ouvir a leveza das tuas palavras de papel vegetal, pelo menos tu sabias ler-me como um livro. Sempre soubeste ler-me como um livro. Se eu te dissesse

-Vês?

Tu, sem rendilhados e mentiras

-Sim, vejo

(-Amo-te)

E o sol, na vidraça, a brilhar.

PedRodrigues

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