Olhava-se
ao espelho num romance desmedido de Narciso apaixonado pela sua imagem. Nem o
vapor que afastava com as mãos o desmotivava. Sentia-se demasiado envaidecido
com a vitória conquistada na noite anterior. A barriga dele agradecia: após
semanas ulcerosas fustigadas de incertezas, eis que, finalmente, chegara a
merecida paz. Nunca se sentira tão feliz. Sabia disso porque nunca se tinha
sentido como naquele momento. Não que aquele momento por si só fosse único, mas
porque era indubitavelmente diferente de tudo o que sentira anteriormente: o
nirvana de que a heroína deve ser feita, imaginava. Nunca os seus olhos haviam
visto daquela forma, caleidoscópios excêntricos num carnaval de cores.
Vestiu-se com toda a calma do mundo: a melhor camisa, talvez não a melhor, mas
a que gostava mais; as calças de ganga desbotadas e as botas por engraxar
davam-lhe um ar de quem não procura, mas quer encontrar. Noutro dia talvez se
sentisse normalmente vestido, mas naquele dia em especial, sentia-se feito da
fibra das fotografias das revistas. Saiu de casa num passo de maratonista a
caminho das medalhas. As luzes dos candeeiros apontavam directamente para ele,
holofotes sedentos da silhueta do seu corpo. Desviava-se do frio num
contorcionismo que achava improvável: sempre fora mais rijo que uma tábua. Em
cinco minutos chegou a casa dela. Os mesmos cinco minutos que demorava a contar
as pedras da calçada enquanto esperava por ela nos primeiros encontros. Quando
chegou à porta sentiu, pela primeira vez naquele dia, um arrepio vadio na
espinha, um tremor de ansiedade nas pontas dos dedos que não conseguia
controlar. Então, ela apareceu a descer o último degrau. Apareceu vinda de onde
são feitos os sonhos - nada tão belo pode ser feito da matéria que existe, pensava
ele. O tecido do vestido acariciava-lhe a pele numa teimosia infinita. Nunca os
ciúmes foram tantos. Ao tirar os olhos do vestido, reparou no sorriso
dela. Lembrou-se do primeiro encontro - numa tarde de final de verão. Apaixonou-se
por tal sorriso. Não foi amor à primeira vista, mas da primeira vez que viu
aquele sorriso, mesmo antes de ele partir, sentiu uma ansiedade imensa, quase
infinita, de o voltar a ver.
(-Deve
ser disto que é feito o amor. E nós amamo-nos. Acredita que amamos. Ainda
estamos juntos, abraçados pela casa, e já estamos a sofrer de uma ansiedade
imensurável pelo regresso um do outro. De modo que eu não sei se conseguiria
viver sem ela, assim como não sei se ela viveria sem mim. O amor, o nosso amor,
é feito desta ansiedade, e nós, por outro lado, somos feitos de amor.)
Lá
estava ele: o sorriso. Rasgando as expressões desdenhosas da cara dela,
aparecia ostentando a sua armadura de esmalte. Sentia uma eternidade entre ambos.
Uma eternidade que os separava: lábios dos lábios, língua da língua. Sentia que
ela era o ar que empurrava o ar que respirava. E sentia-se asfixiado enquanto
esperava por ela. Nunca o ar fora tão pouco nos seus pulmões. Os dedos voltaram
a tremer até encontrar o toque da pele dela. Nesse momento o mundo parou de
girar em torno do seu eixo e passou a girar em torno dela. Nunca os lábios dele
pareceram tão certos. Nunca as pregas dos lábios dele encaixaram tão
simetricamente nas pregas de outros lábios. Os braços dele rodeavam-na num colete-de-forças
que só cessou com a chegada do táxi.
Ao
entrarem no carro deram as mãos. Numa estranha timidez ela olhava as luzes pelo
vidro da janela. Ele olhava para ela. Olhava para as mãos atadas uma
na outra num laço de cordel de western americano. O bafo dela no vidro
intrigava-o. Em miúdo rabiscava no ar condensado nos vidros, gravava palavras
numa ingénua esperança de que ali ficassem para sempre. Murmurava às janelas os
nomes dos seus amores de bolso e esse sentimento durava até os nomes
desaparecerem. Às vezes duravam mais um bocadinho, mas ele não sabia. Será que
o laço também se desataria quando o vidro se fartasse do seu nome? Não
acreditava nisso. Sabia que o amor deles não era feito de átomos, ou de outra
matéria qualquer. Não era feito de palavras gastas ou de clichés de telenovela.
Não era um amor demasiado infantil, nem demasiado maduro. Era feito da tal
ansiedade. Não uma ansiedade qualquer. Não aquela ansiedade que vai corroendo
por dentro como um ácido. Era feito da ansiedade que separa o ainda estarmos
juntos e o voltarmos a estar juntos. É disto que são feitos os grandes amores –
e de beijos, de sorrisos e carícias; e de todos os grandes gestos. De maneira
que ele ainda agora vai escrevendo, de mãos vazias. Numa ansiedade tal, que os
dedos se vão entrelaçando uns nos outros, enquanto esperam pelos dedos dela.
PedRodrigues
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