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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Este laço de que o amor é feito


Olhava-se ao espelho num romance desmedido de Narciso apaixonado pela sua imagem. Nem o vapor que afastava com as mãos o desmotivava. Sentia-se demasiado envaidecido com a vitória conquistada na noite anterior. A barriga dele agradecia: após semanas ulcerosas fustigadas de incertezas, eis que, finalmente, chegara a merecida paz. Nunca se sentira tão feliz. Sabia disso porque nunca se tinha sentido como naquele momento. Não que aquele momento por si só fosse único, mas porque era indubitavelmente diferente de tudo o que sentira anteriormente: o nirvana de que a heroína deve ser feita, imaginava. Nunca os seus olhos haviam visto daquela forma, caleidoscópios excêntricos num carnaval de cores. Vestiu-se com toda a calma do mundo: a melhor camisa, talvez não a melhor, mas a que gostava mais; as calças de ganga desbotadas e as botas por engraxar davam-lhe um ar de quem não procura, mas quer encontrar. Noutro dia talvez se sentisse normalmente vestido, mas naquele dia em especial, sentia-se feito da fibra das fotografias das revistas. Saiu de casa num passo de maratonista a caminho das medalhas. As luzes dos candeeiros apontavam directamente para ele, holofotes sedentos da silhueta do seu corpo. Desviava-se do frio num contorcionismo que achava improvável: sempre fora mais rijo que uma tábua. Em cinco minutos chegou a casa dela. Os mesmos cinco minutos que demorava a contar as pedras da calçada enquanto esperava por ela nos primeiros encontros. Quando chegou à porta sentiu, pela primeira vez naquele dia, um arrepio vadio na espinha, um tremor de ansiedade nas pontas dos dedos que não conseguia controlar. Então, ela apareceu a descer o último degrau. Apareceu vinda de onde são feitos os sonhos - nada tão belo pode ser feito da matéria que existe, pensava ele. O tecido do vestido acariciava-lhe a pele numa teimosia infinita. Nunca os ciúmes foram tantos. Ao tirar os olhos do vestido, reparou no sorriso dela. Lembrou-se do primeiro encontro - numa tarde de final de verão. Apaixonou-se por tal sorriso. Não foi amor à primeira vista, mas da primeira vez que viu aquele sorriso, mesmo antes de ele partir, sentiu uma ansiedade imensa, quase infinita, de o voltar a ver.
(-Deve ser disto que é feito o amor. E nós amamo-nos. Acredita que amamos. Ainda estamos juntos, abraçados pela casa, e já estamos a sofrer de uma ansiedade imensurável pelo regresso um do outro. De modo que eu não sei se conseguiria viver sem ela, assim como não sei se ela viveria sem mim. O amor, o nosso amor, é feito desta ansiedade, e nós, por outro lado, somos feitos de amor.)
Lá estava ele: o sorriso. Rasgando as expressões desdenhosas da cara dela, aparecia ostentando a sua armadura de esmalte. Sentia uma eternidade entre ambos. Uma eternidade que os separava: lábios dos lábios, língua da língua. Sentia que ela era o ar que empurrava o ar que respirava. E sentia-se asfixiado enquanto esperava por ela. Nunca o ar fora tão pouco nos seus pulmões. Os dedos voltaram a tremer até encontrar o toque da pele dela. Nesse momento o mundo parou de girar em torno do seu eixo e passou a girar em torno dela. Nunca os lábios dele pareceram tão certos. Nunca as pregas dos lábios dele encaixaram tão simetricamente nas pregas de outros lábios. Os braços dele rodeavam-na num colete-de-forças que só cessou com a chegada do táxi.
Ao entrarem no carro deram as mãos. Numa estranha timidez ela olhava as luzes pelo vidro da janela. Ele olhava para ela. Olhava para as mãos atadas uma na outra num laço de cordel de western americano. O bafo dela no vidro intrigava-o. Em miúdo rabiscava no ar condensado nos vidros, gravava palavras numa ingénua esperança de que ali ficassem para sempre. Murmurava às janelas os nomes dos seus amores de bolso e esse sentimento durava até os nomes desaparecerem. Às vezes duravam mais um bocadinho, mas ele não sabia. Será que o laço também se desataria quando o vidro se fartasse do seu nome? Não acreditava nisso. Sabia que o amor deles não era feito de átomos, ou de outra matéria qualquer. Não era feito de palavras gastas ou de clichés de telenovela. Não era um amor demasiado infantil, nem demasiado maduro. Era feito da tal ansiedade. Não uma ansiedade qualquer. Não aquela ansiedade que vai corroendo por dentro como um ácido. Era feito da ansiedade que separa o ainda estarmos juntos e o voltarmos a estar juntos. É disto que são feitos os grandes amores – e de beijos, de sorrisos e carícias; e de todos os grandes gestos. De maneira que ele ainda agora vai escrevendo, de mãos vazias. Numa ansiedade tal, que os dedos se vão entrelaçando uns nos outros, enquanto esperam pelos dedos dela.

PedRodrigues

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