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domingo, 19 de fevereiro de 2017

Desabafo (2)

Tenho a cabeça na almofada, a luz apagada, o silêncio ligado entre a aparelhagem citadina. É a esta hora que os fantasmas acordam, não é? É a esta hora que eles se soltam dos espaços onde se escondiam para nos atormentar, não é? É a esta hora que bate aquela saudade, não é? Deve ser, porque sinto a cabeça a girar. Dever ser, porque o sono não me adormece e teimo em repetir filmes que já estão gastos de tanto uso. Gostava de estalar os dedos e o mundo parar por instantes. Ter um tempo para mim, onde pudesse gritar, espernear, pontapear violentamente o ar e tudo à minha volta, esmurrar a almofada, gritar novamente “estúpido, estúpido, estúpido”, largar a raiva, os medos, as perguntas idiotas “podia ter feito mais?”; “porquê?”; e o medo de mão dada com os fantasmas, porque talvez tivesse sido a minha última hipótese de felicidade, porque não se sabe se será assim para sempre, se temos a tristeza e a desilusão a funcionarem num ciclo, e por mais que transformemos os desgostos e as desilusões em poesia, chega um dia em que nos cansamos, olhamo-nos ao espelho e sentimo-nos gastos, como um fantoche velho, atirado para o chão; e ninguém nunca nos vai querer; ninguém nunca vai quebrar este ciclo e a tristeza continuará a vir sempre depois, a ir e vir, como o inverno, ou outra estação qualquer. E talvez haja beleza no meio da destruição, talvez seja a tristeza um motivo para a construção, a criação de algo belo: a melhor arte nasce dos corações magoados. E, sabes, se não morreste de todas as outras vezes, de todas as outras dores, de todos os outros prantos e lamentos, hoje também não vais morrer. Uma coisa boa da vida é que ela avança. Vai-nos empurrando para a frente. E, quando olhamos para trás, para todas as marcas na estrada que temos percorrido, percebemos que são apenas isso: marcas. Nada mais. A vida avança e ninguém tem o direito de te fazer parar. Ninguém que te faça pensar dessa forma te merece. Não devemos construir a felicidade debaixo de telhados alheios; devemos ser felizes por conta própria. Cada qual com o seu telhado, no seu espaço. Porque quando dependemos de alguém para sermos felizes, algo está mal. E não podemos atirar sempre as culpas para cima do amor. Ele não pode ser sempre o bode expiatório. E talvez não seja assim tão difícil sermos felizes por nossa conta. Talvez a poesia também possa nascer de corações felizes. Talvez a lição número um seja simples, uma fórmula gasta, um cliché, sei lá: ama-te primeiro. E depois: lembra-te da lição número um quando amares alguém. Talvez não valha a pena deixar algo tão importante, como a nossa felicidade, em mãos alheias. E depois? Depois o amor - sim, o amor - há-de efectivamente chegar. Alguém há-de aparecer para te fazer esquecer tudo o que te trouxe até aqui. E na verdade talvez não esqueças, mas deixarás de viver consumido por isso. A vida avança. Deixa-a avançar. Caça os fantasmas todos: guarda-os numa caixa, e atira-a para longe. E sê feliz: é a melhor vingança, o melhor remédio. 


PedRodrigues

4 comentários:

  1. Felicidades & muitas inspirações na nova morada...

    MJ

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  2. ...ok, se achas mesmo que...
    Ser feliz = vingança
    Não está mais aqui quem vos fala.

    MJ

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  3. (...) está então a se vingar de alguém?
    Mas, e se ela já for feliz sem ti?
    Sê feliz....ou não...viva isso...e não como forma de vingança...em que mundo vives?...

    MJ

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