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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para a estação, por favor

Sou taxista há trinta e um anos. O meu pai nunca quis que levasse esta vida. Era major na tropa e combateu no Ultramar. Também não me quis na guerra:
- A guerra mata-nos por fora e por dentro…
Dizia-me ele quando eu era mais novo. Nunca me deixou aproximar das medalhas que guardava numa sala escura lá de casa. Tinha medo que fosse possuído por um demónio qualquer que vivia em cada uma delas. Nunca tive coragem de lhe perguntar de onde tirou essa ideia que me parecia absurda. Também nunca tive curiosidade de entrar nessa sala e de mexer nas malditas medalhas. Pediu-me que me licenciasse em Direito e assim o fiz. Apesar de autoritário, sempre foi um bom pai. Nunca me faltou em nada, nem mesmo no amor - que eu via a fugir-lhe do corpo, cortesia dos horrores da guerra. O meu pai suicidou-se pouco tempo depois de eu ter terminado a faculdade.
Ele nunca gostou de taxistas. Não confiava neles. Dizia que sabiam muito sobre a vida de muita gente. O que, do ponto de vista militar, lhes dava uma vantagem táctica sobre o inimigo, neste caso: os clientes. Apesar de tudo, foi esta a vida que escolhi seguir. Acho que após a morte do meu pai, a única forma de me sentir feliz era andando às voltas pela cidade. Passeando-me por Lisboa de forma a esquecer que a vida é uma sucessão de estradas que acabam num abismo. De certa forma, na minha cabeça, esta era a minha maneira de enganar o destino. Andando às voltas pelas estradas sem nunca cair nesse abismo. Assim sendo, enfiei o diploma numa gaveta e usei parte do dinheiro da herança que o meu pai me deixou para comprar aquele que viria a ser o meu primeiro táxi.
Durante anos ouvi histórias
- Para a Rua do Comércio, por favor…
De todo o tipo de pessoas. Desde médicos, a advogados, a marinheiros, a mulheres-a-dias, a prostitutas…
- Para a Avenida de Roma e rápido, por favor!
Ia assistindo a verdadeiras tertúlias no banco de trás do meu carro. Às vezes as pessoas esqueciam-se que eu estava ali e estava a ouvir tudo. Às vezes esqueciam-se que a vantagem táctica estava do meu lado – como diria o meu pai – visto que, eu sabia muito da vida delas e elas nada sabiam sobre mim, apenas o meu nome e profissão.
Umas vezes lá ia apanhando um ou outro cliente mais falador
- Então e aquele jogo ontem? Aquilo é que foi!
Ou
-Este tempo está mesmo horrível… Só chuva, só chuva…
Com o passar dos anos e as evoluções tecnológicas lá começaram a aparecer os telemóveis. As conversas eram menores e os telefonemas mais longos.
- Para a Avenida de Ceuta, por favor…
(O telemóvel no ouvido)
-Já te disse que estou aí em dez minutos!
Eu perdido a ver Lisboa, a enganar a morte e a fintar o abismo…
- São nove euros e trinta e cinco cêntimos.
(A ouvir o meu pai:
- Não confio nestes tipos!)
-Fique com o troco.
Um dia entrou uma rapariga no táxi. A rapariga mais bonita que tinha entrado no meu táxi em trinta anos de serviço. Tinha cabelos loiros e olhos verdes. Sorria enquanto falava ao telemóvel - que se perdia atrás dos longos fios de cabelo. Estávamos em Julho e eu conseguia diferenciar as marcas do biquíni, no meio da pele bronzeada. Perguntei:
-Para onde vamos?
Ela, no seu tom de voz tão jovial:
-Para a estação, por favor…
Uma pausa
-Cais do Sodré.
Ela desligou o telemóvel. Nunca tive por hábito meter conversa com ninguém. Apenas respondia a quem comigo se metia, mas naquele dia senti-me obrigado a começar a conversa. Ela parecia-me perturbada com o telefonema. O sorriso tinha desaparecido e os olhos tinham perdido o verde esperança que traziam minutos antes
- Problemas?
Ela
- Nada de especial. O estúpido do meu namorado acabou comigo…
Os relacionamentos não eram o meu forte, por isso estava a pisar terrenos que não me pertenciam.
-Às vezes é melhor uma racha no coração que uma vida de tortura.
Ainda hoje me questiono de onde veio tal frase. Ela começou a chorar
-Mas eu gostava tanto dele. Tanto, tanto. Dava a minha vida por ele!
Não sabia que dizer. Tinha gasto o meu último cartucho. Naquele momento estava desarmado e sem saber que fazer perante as lágrimas da rapariga. Felizmente, tínhamos chegado ao destino.
- Aqui estamos. São seis euros e quarenta e cinco cêntimos, por favor.
A minha frieza involuntária funcionou como saída de emergência daquela situação. A rapariga engoliu as lágrimas e procurou na carteira o dinheiro para me pagar. No momento em que lhe entreguei o troco, as nossas mãos tocaram-se. A minha frieza involuntária deu lugar a um sentimento de pena profundo. Ao despedir-me
-Boa sorte. Vais ver que as coisas vão ser melhores daqui para a frente.
Sorri para ela. Ela retribuiu
-Obrigado.
Fechou a porta e voltou costas. Liguei o rádio. No momento em que ia arrancar oiço
- Pare, pare!
Era a rapariga. Tinha-se esquecido do telemóvel no táxi.
-Ainda bem que parou. Não sei como ia sobreviver sem ele.
Ofereci-lhe o meu cartão (algo que raramente fazia)
- Obrigado. Quando precisar eu ligo-lhe. O meu nome é Ana Sofia, mas todos me chamam Sofia.

Lembro-me de ter dito uma piada qualquer, sem jeito nenhum. Serviu o seu propósito: ambos nos rimos. No meio das gargalhadas em uníssono vi-a partir.
Faz hoje um ano desde esse dia. A Sofia nunca me ligou. Talvez nunca tenha precisado. Estacionei o táxi junto ao mar a olhar o horizonte, perguntando-me onde será o final da estrada. Abro o jornal e no meio das notícias vejo uma que me chama a atenção. Um suicídio numa linha de comboio. Vejo o nome da vítima: Ana Sofia Monteiro de Castro. Ao lado, a foto da rapariga. Os olhos verdes e os cabelos loiros tinham perdido a cor. Mas era ela: a Sofia que nunca me ligou. Encontrou o abismo. Ou então, a racha no coração era o próprio abismo. Tinha sido consumida por ele. Fechei o jornal. Uma lágrima desceu do meu olho até aos estofos do táxi. Voltei a olhar o horizonte. Perguntei
-Porque é que neste mundo a beleza também chora?
O meu pai a gritar-me
- Não confio nesses tipos
Eu a procurar o abismo, com a imagem da Sofia, desfeita em lágrimas, na minha cabeça
-Afinal, neste mundo, a beleza também chora…

PedRodrigues

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