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sábado, 10 de fevereiro de 2018

Amor 21

Era na altura em que as laranjas amadureciam nas árvores. O frio, a chuva, a nogueira despida,  ainda mostravam que era inverno. 
D. apaixonou-se por C.. Foi um amor à primeira vista. Um desses amores que entram como o bico da faca na carne, incrustando-se até ao cabo de uma vez. Um frio metálico, dilacerante, que deixou D. petrificado, de raízes plantadas como a velha nogueira do quintal, os seus dedos tremiam como os galhos da árvore empurrados pela brisa gelada daquele inverno.
C. estava demasiado concentrada no ecrã do seu telemóvel para se apaixonar por quem quer que estivesse para lá do objecto. O analógico aborrecia-a de morte. Vasculhava com os dedos finos as vidas alheias. Por vezes deixava sair um sorriso ligeiro, mais espasmo que reacção voluntária. Os lábios dela tinham curvas suaves, não haveria perigo em beijá-los, pensou D., enquanto o gume da faca o cortava mais um bocadinho por dentro.
C. guardou finalmente o telemóvel, o filtro com que maquilhava a vida. O céu não é assim tão azul, pensou. Se o telemóvel tivesse mais um pouco de bateria talvez guardasse lá dentro o céu para o mostrar ao mundo, para que os outros o pudessem ver um pouco mais azul e a felicitassem por tão belo registo da realidade - embora na realidade o céu não fosse assim tão azul. 
D. pensou em falar com C., mas a ideia pareceu-lhe absurda e logo a embrulhou e atirou para longe. 
O autocarro chegou e levou C. consigo.
Mais tarde, já o céu de inverno cobria de preto os galhos e as laranjas, D. deu por si agarrado ao motor de busca, procurando C.. Não lhe sabendo o nome, mas ainda lhe recordando os traços do rosto, deu por si numa missão que se adivinhava praticamente impossível. No entanto, a persistência revelou-se benéfica e a fotografia de C., dentro de um quadrado minúsculo, sorria para ele, de dentes muito direitos.
D. escolheu uma fotografia boa, em que se aparentava maior, mais bonito, mais viajado, mais feliz. Ninguém gosta de pessoas mastigadas pela realidade. Enviou o pedido de amizade e esperou. C. aceitou. O D. digital interessava-lhe. 
Viu uma fotografia das laranjas e disse que gostava disso. As laranjas são mais doces quando são fotografadas.  



PedRodrigues

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