É meia-noite. O último autocarro acabou de passar. Consigo ver a paragem, da janela do meu quarto.
(Hoje não a consigo ver.)
Tenho a minha namorada sentada no parapeito a olhar para o abismo. Ou à procura de uma vertigem que tarda em aparecer do asfalto que limita o final desse abismo. Lá vai fumando o seu cigarro, enquanto eu aqui estou: deitado na minha cama a imaginar as linhas deste texto. Sinto o cheiro dela nas almofadas - adoro. Juro que adoro. O cigarro continua a arder, lentamente. Ela continua a olhar para um sítio qualquer. Está a dormir de olhos abertos no parapeito da minha janela. Eu aqui, a olhar para ela. A observar cada gesto. A forma como leva o cigarro à boca. A forma como expira o fumo. A forma como contrai as pernas devido ao desconforto causado pela pedra do parapeito. Ali está ela: a minha namorada. Nem sempre as coisas foram assim.
Lembro-me de quando não tinha namorada. Lembro-me da busca incessante pela mulher certa – a que se sentasse no parapeito da minha janela, a fumar um cigarro, enquanto eu a observo da minha cama, a tentar avaliar o grau de loucura que me leva à loucura. Lembro-me das muitas noites que passei sozinho. Aquelas a que ninguém dá valor - visto que fazem de mim uma puta. Lembro-me de algumas outras, não menos solitárias. Alegres, com um final triste. Ou apenas um final, já que todos os finais são tristes. Elas a fugirem-me entre os dedos. Ou eu a abrir a mão para as deixar fugir. Não tenho pena delas. Não tenho pena de mim. Viver é isto: aprender a cada passo. Viver é isto: desdenhar cada passo como se fosse o último. Devia ser assim.
Sempre me senti como o centro de um campo magnético a que algumas pessoas estão sujeitas. Sempre me senti assim. Não me lembro quem me fez pensar que as coisas funcionam desta maneira. No entanto, na minha cabeça – e na cabeça de muita gente – a minha vida é este jogo de damas, em que eu ganho a cada peça que colecciono . Lembro-me de
-Gosto de ti
Ser o centro de algumas galáxias nas quais falta um sol. Não sou um sol. Nunca fui um sol. Não tenciono ser um sol. Não sei amar. Seja em que língua for. Sinto-me a aprender. Hoje.
Elas
-Há algo em ti
Enquanto eu não me entendo. Enquanto eu nunca me entendo. Enquanto eu nunca me entendia. Eu a ser um centro de algo que ainda não sei. Hoje.
-Desculpa. Não sei amar em inglês.
Enquanto elas me iam falando em línguas que não entendo. Ainda hoje não entendo. Todas elas lindas. Todas elas mulheres. É preciso dizer mais? Mulheres. O verdadeiro mistério da raça humana. O “ser ou não ser?” do Shakespeare, em cada curva, em cada gesto, em cada palavra. Elas. Mas eu
-Não sei amar em inglês.
Nunca soube. Elas que atravessavam oceanos. Faziam-me juras de amor. Entregavam-se. Ainda hoje não as mereço. Não as quero merecer. Olho para a janela. Ela. Sim, ela. Linda. No crepúsculo entre a aurora e as luzes dos candeeiros. Ela na janela. O último autocarro. Eu a ler as linhas deste texto nela. Nas curvas dela.
-Não sei amar em inglês.
Tu sabes? Não me interessa se sabes, realmente. Eu não sei. Não quero amar em inglês. Não há nostalgia nesse canto do amor. Há? Não acredito. Sou demasiado céptico. Ainda continuo a descobrir o amor. No entanto
-Não sei amar em inglês.
Todas as mulheres são lindas. Cada uma na sua língua. Desculpem-me. Não sei amar dessa forma. Na vossa língua. Amo cada uma à minha maneira. Desculpem
-Não quero amar em inglês.
Digam-me coisas. Sussurrem-me palavras. Digam que me amam. Digam que sou importante – mesmo que agora esteja aqui, sozinho, a escrever. Não me digam. Não preciso.
-Não sei amar
(-Em inglês?)
Ela ali na janela
(-Sim)
Eu a olhar para ela.
O último autocarro a fazer o barulho de um motor gasto. Eu sorrio enquanto ela me devolve o sorriso.
-És linda
Ela
-Sabes amar em inglês?
Eu
-Não. Nunca aprendi. Nunca quis aprender.
(Ela atira o cigarro pela janela.)
Uma perna entra pelo quarto enquanto ela me sorri. Eu a devolver o sorriso. Paralisado. Barulhos na rua. As outras a chorarem por algo que nunca entendi. Nunca hei-de entender. Tenho para mim que cada um sabe o que dizer, como dizer, quando dizer. Não há um amor de modas.
-Não sei
Eu
-Juro que não sei
O quê?
-Amar em inglês.
Elas passeiam os vestidos, os sorrisos, as falas nessa língua dos filmes de cinema. Infelizmente para elas, não sei amar em inglês.
Hoje deito-me aqui sozinho a imaginar a minha namorada: na janela, a fumar um cigarro, enquanto o último autocarro teima em não passar.
Felizmente para nós, não precisamos de falar. Felizmente para nós
-Eu sei-te amar
As barreiras linguísticas apanharam o último autocarro, que teimava em não passar na paragem que, hoje, não consigo ver da janela do meu quarto.
PedRodrigues