Sempre pensei que quando passasse dos sessenta os dias iriam tornar-se mais curtos. Que o relógio se esqueceria dos segundos e dos minutos, de forma que as sete da manhã se confundiriam com as sete da tarde e os dias passariam por mim a uma velocidade de carro de corrida. Reformei-me por volta dos sessenta e cinco anos e os dias continuaram iguais. Nada de novo a não ser mais umas dores nos joelhos, mais uma ou duas rugas na cara, um aumento considerável de idas à casa de banho, os óculos – que tive de trocar, visto que as letras do jornal me começavam a fugir, novamente – e pouco mais. A minha mulher continuava na mesma. As pessoas na rua diziam que os anos não passavam por ela. Eu achava que passavam, mas esqueciam-se de lhe levar a juventude. Estávamos juntos há quarenta e oito anos e ela continuava tão bonita como no dia em que a conheci. Casámo-nos jovens e aos vinte anos já tínhamos dois filhos. Nunca amei mais ninguém na minha vida. Reparti o meu amor pelos três e nunca desperdicei um pingo que fosse fora de casa.
Amei a minha mulher até ao dia em que partiu. Tinha setenta e seis anos quando ela me foi roubada. Lembro-me desse dia todos os dias - quando me levanto da cama e rumo ao cemitério para visitar a campa onde ela jaz. Lembro-me dos beijos dela de todas as vezes que beijo a fotografia que está na lápide. Uma lágrima desdenhosa acaba sempre por aparecer. Uma lágrima que não sei de onde vem. Talvez venha deste fumo miudinho de que sou feito. Deste resto de fogo que, hoje, aos oitenta e dois anos, arde cada vez com menos fulgor. Roubaram-me a minha chama e todos os dias me pergunto onde arranjo forças para me levantar da cama. A verdade é que me levanto e ela não está. E as horas, que deveriam passar por mim a uma velocidade de carro de corrida, continuam a passar ao mesmo ritmo penoso, tornando cada vez mais densa a solidão.
Os meus filhos ligam-me todos os dias. Costumam aparecer de vez em quando cá por casa com as mulheres e os miúdos. Lá me vão dizendo
-O pai não quer vir viver connosco?
Eu finjo-me de desentendido e mudo logo de assunto. Prefiro ficar por aqui. A dormir na mesma cama onde, outrora, dormia a única mulher que amei. E no entretanto entre o sono e a solidão vou-me entretendo a limpar a casa, a tratar do jardim, a ler uns livros e as notícias no jornal. A dedilhar as páginas à procura de algo interessante no meio do habitual amontoado de sensacionalismo. Algo interessante como estes anúncios nos classificados onde aparecem raparigas nuas. Onde cada imagem se torna uma tentação. Cada anúncio torna essa tentação maior. Fui homem de uma só mulher. Nunca estive com mais ninguém. Nunca desejei estar com mais ninguém. Mas a solidão tem-me consumido o corpo e a alma. Sinto falta do aroma de uma mulher. Das curvas suculentas e da suavidade das carícias. Talvez sejam os delírios de um velho viúvo a falar mais alto, mas preciso de me sentir amado uma última vez.
(Pego no telefone e marco o número de um anúncio aleatório)
-Estou sim?
Uma voz de seda vai-me respondendo do outro lado. A certa altura eu
- Se nos pudéssemos encontrar para conversar. Só para conversar.
A voz de seda a responder-me do outro lado
-Só para conversar?
Eu já não tenho idade para muito mais. Não tenho idade para aquilo que está a pensar. Além disso, fui homem de uma só mulher e a minha chama morreu com ela. Só preciso de me sentir amado uma última vez.
-Se me puder dar a mão, agradecia. E se me puder acariciar a cara ficaria eternamente grato.
Marquei o meu último encontro para as quatro da tarde num café perto de casa. São três da tarde e o relógio teima em não apressar as horas. Visto-me a rigor e faço-me ao caminho. No cruzamento entre o café e o cemitério volto para onde me leva o coração. São quatro horas e eu estou a beijar a fotografia de quem ainda amo. Há amores que duram uma vida e o nosso ainda vive comigo. Espero que a senhora da voz de seda não fique zangada. Eu sei o que custa esperar por alguém que nunca vai aparecer.
PedRodrigues