É aqui, no meio deste mar, deste
fado, que te escrevo, meu amor. Aqui, neste deserto líquido, o céu mistura-se
com a água. Não há horas, não há norte, não há sul, nem este, nem oeste. Aqui
existo eu e os meus marinheiros. Para lá das escotilhas o sol nasce e põe-se
dentro do mar. Perdemos a noção do tempo. Perdemos a noção do espaço. São as
saudades que sinto de ti que me guiam.
Decidi há alguns anos, naquele
dia, naquele momento, naquele segundo, que o resto da minha começava ali:
contigo. Ainda me lembro do teu vestido branco de gola rendada, do teu olhar
inocente na minha direcção. Coraste e eu corei contigo. Como controlar os
impulsos da primeira troca de olhares? Deixei os meus amigos e fui ter contigo
-Olá
O teu rosto não mentia.
Respondeste-me timidamente, quase entre os dentes
-Olá
Eu avancei
-Chamo-me Vítor
Ainda consigo ouvir a música que
tocava de fundo enquanto contava as rendas da tua gola.
-Chamo-me Maria José
A verdade é que eu já sabia o teu
nome. Sabia, mas queria ouvi-lo da tua boca, na tua voz de mel, queria ver os
teus lábios a vibrarem com cada palavra.
Do momento em que trocámos os
nossos nomes até ao momento do nosso casamento a história teimou em repetir-se:
conhecemo-nos, crescemos, o nosso amor cresceu connosco, eu pedi-te em
casamento e tu aceitaste. Esses dias só a nós nos pertencem.
Os homens são barcos que vão e
vêm pela vida e acabam sempre por atracar num porto seguro. Tu és o meu porto
seguro e sempre serás. Sempre que parto sonho com o dia do meu regresso. Todas
as horas são horas de agonia. Nada nem ninguém consegue separar-nos. Nem este
mar imenso, nem todos os oceanos do mundo. Teimo em partilhar-te com o mar. Sei
que deves achar injusto – e na verdade é. Mas foi esta a vida que escolhi. O
teu pai teve o mesmo destino e a tua mãe, tu e a tua irmã nunca deixaram de o
esperar. Aqui no meio desta solidão das horas que se confundem é a tua imagem
que me guia. Espero que não te esqueças de mim. Minto. Sei que não te esqueces
de mim.
Atracarei dentro de horas e
espero que estejas à minha espera. Quantas vezes vieste a Sines buscar o teu pai?
Quando os meus pés pisarem o cais espero pelo teu abraço. Espero pelo teu
sorriso, pelas tuas mãos, pelo teu cabelo ao vento. Espero-te. Espero-te toda.
Espero-te inteira.
Consigo ver-te a chegar, deste
lado do cais. O meu pai e a minha mãe vieram comigo. Esperei durante dois meses
de coração na mão. Ainda não sabes, mas estou grávida. Não quis dizer-te por telefone,
acho que uma notícia destas é demasiado grande para ser partilhada por
telefone. Não imaginas a vontade que tive de te contar. Não imaginas a
ansiedade desta espera demorada pelo teu abraço.
Corri até ti mal pisei o cimento
do cais. O cheiro do teu perfume confundia-se com o cheiro do óleo e da
gasolina dos motores em nossa volta, mas isso pouco importava. Tinha-te
novamente nos meus braços. Brilhavas mais que nunca. Beijámo-nos cerca de cem
vezes - ou na minha cabeça assim pareceu.
-Estou grávida
Disseste enquanto as pregas dos
teu lábios encaixavam nas pregas dos meus lábios.
-Estou grávida
O tempo parou. Continuou parado
até que consegui assimilar as tuas palavras. Estavas grávida. Às vezes, quando
pensamos que não podemos ser mais felizes, a vida prega-nos estas partidas.
O nosso filho faz hoje cinco
anos. Custa-me o mundo viver separado de vós. Amo-vos com todas as minhas
forças, mas foi esta a vida que escolhi. Espero que ele não se esqueça da minha
cara, ou da minha voz. Este mar, este fado, separa-nos aos três. A saudade
estilhaça-se com as ondas. Aqui, no Pico, o sol brilha. Estamos atracados, mas
este porto a mim nada me diz. Falta-me o teu abraço, faltam-me as mãos do nosso
filho a agarrem-me os dedos. Aqui a saudade é maior que este oceano que se estende
à minha volta. Um dia disseram-me que com um A o mar fica maior. Ao que parece,
esqueceram-se de dizer que quanto maior o mar, maior a saudade. Talvez não seja
sempre assim. Mas, a verdade, é que neste momento o mar é demasiado grande. Não
vejo a hora de regressar.
Faz hoje seis meses que estás no
mar. O Pedro está cada vez mais crescido. Acreditas que já sabe o alfabeto de
trás para a frente? Tem os teus olhos, o teu cabelo e o teu nariz. De mim só
herdou a beiça levantada. Fala várias vezes em ti e nota-se tão bem a saudade
espelhada na cara dele. Volta depressa para nós.
Daqui a poucas horas estou em
casa. Este ano consigo passar a noite de Natal e o Ano Novo. Pela primeira vez
em três anos consigo passar convosco ambas as datas. O navio seguirá sem mim
para a reparação. Ao que parece está com problemas no casco. Com sorte ficará
na doca durante algum tempo e eu poderei ficar por casa mais alguns dias. Tenho
tantas saudades vossas. Tantas, tantas. Mas daqui a poucas horas estarei junto
de vós. Esperem só mais um pouco: estou mesmo a chegar.
Aos meus pais que, em conjunto com os meus avós, partilham a mais
bonita história de amor que conheço. Feliz vigésimo nono aniversário de casamento.
E peço desculpa por esta prenda de aniversário antecipada - juro que ainda sei a data do vosso casamento.
Com Amor,
Pedro
PedRodrigues