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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Nevralgia



Oito da manhã. Céu cinzento, com vento a soprar, frio, de oeste. Nada disto é relevante. 
Os muros do campo, tombados, anunciam a verdadeira catástrofe das edificações: a forma como se vergam perante a natureza.
Olho para trás. Na cronologia em que a minha vida ocorre, dou por mim a ver com clareza o tempo que tenho perdido. É muito bonito assumirmos que não perdemos tempo com certas pessoas; que tudo o que se aparenta maior que a topografia usual da existência é uma aprendizagem. Não é. Seria belo criar um quadro em volta mas, fundamentalmente, quando reduzimos as coisas ao menor denominar possível, percebemos o inevitável: há coisas, situações, pessoas, que são uma perda de tempo. Em termos matemáticos: nada nos acrescentam; no limite, até acabam por subtrair. 
Enquanto caminhava até casa, pela areia, com o mar a rebentar do meu lado direito, dei por mim a respirar fundo e pensar: que se lixe. Mas, agora, sentado no sossego de casa, percebo algo nevrálgico: a forma como perdemos estupidamente tempo ao longo da vida. A verdade é que podia doirar a pílula, adocicar a coisa, mas é triste percebermos que o tempo perdido com certas pessoas não nos é devolvido. É imperial perceber isso. A vida é um pavio acendido à nascença, esfuma-se num instante. O tempo, esse, é um bem precioso; o único irrecuperável. Não o percamos, ao longo do caminho. 


Pedro Rodrigues

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Manual de Cardiologia

Amares alguém
é dares-lhe a faca
e esperares
o golpe
que te abre como uma porta

se tiveres sorte
do outro lado levam a linha
suturam-te
e trancam-se por dentro

se tiveres azar
prepara-te
para a desordem:

o vento entra com facilidade pelas portas abertas

Pedro Rodrigues

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O último poema, do último tempo

dada a possibilidade 
dou por mim constantemente a escolher
os artigos defeituosos, as almas perdidas,
as pessoas destroçadas por dentro
por isto ou aquilo
tenho uma aptidão para a desgraça
e acho isso bonito
pelo menos por momentos
até o sangue me subir
a duzentas rotações 
por minuto à cabeça
e tudo se turvar
e o presente se 
tornar demasiado doloroso
para ser vivido de olhos abertos
mas 
a beleza desse mundo
partido como o espelho
por uma marreta
traz-me sempre de volta

dada a possibilidade
escolho os cacos
os destroços
as ruínas
e tento juntar tudo
como uma bela confusão
ou uma forma de arte




Pedro Rodrigues

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Gente dentro

fundamentalmente 
somos todos cacos
com gente dentro

somos coisas partidas
pouco
muito pouco
mas com gente dentro

fitamos a beleza
das explosões
junto ao abismo
pé, após pé
avançamos para o vazio
será que há gente dentro?

sei muito pouco do salto
já cheguei assim
estilhaçado
com gente cá dentro
a bater no beito
como quem bate à porta
deixa-me sair
deixa-me sair
deixa-me sair
60 bpm
deixa-me sair

será que do lado de fora 
há gente que me dê a mão?


Pedro Rodrigues


domingo, 13 de janeiro de 2019

Sem título

os corpos de costas voltadas
como ilhas distantes na cama
e os destroços pelo meio
intempéries e monstros
que se revoltam contra 
a monotonia
bem-vindos ao novo século
aos amores construídos 
sobre gente movediça
aos velhos amantes
azedos como o vinho
das piores castas
cujo travo se perpetua
na garganta
bebe mais um gole
prova mais uma vez
para teres a certeza
que não é mais que a faca 
encostada ao teu umbigo
fria, metálica, maquinal
a querer ferir a carne
tenra, quente, humana
quem somos nós
se não esses destroços
esquecidos no espaço
entre os nossos corpos?
se fechar os olhos
ainda aqui estás
feita dos mesmos átomos
moléculas, tecidos
essa linha fina
a lâmina de luz que é
o teu rosto
a música no ar
e tu a falares-me 
de amores que te marcaram
sim, a faca
sim, a carne
não, não tenho como
competir com feridas
antigas
só sei do agora
das tuas mãos a pedirem
as minhas
que te aqueçam
porque o passado
era frio
só sei do agora
que o amor realmente
como dizes se constrói
todos os dias
(é um pouco cliché
mas não é menos verdade)
bem-vinda ao novo século
dos amores construídos
sobre terra firme
ergueremos, se quiseres, um castelo
longe de tudo, longe de todos
nesse lugar distante
onde os amantes 
se encontram
depois de naufragar



Pedro Rodrigues

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Somos pó de estrelas, Beatriz

Olha Beatriz: como o sol recorta a silhueta da cidade, as fachadas antigas dos prédios a namorarem, como se a vida não fosse um sopro e tudo se resumisse a betão e fuligem. Vê como as pessoas passam apressadas por nós, alheias ao fuso horário em que vivemos. Eu e tu não somos mais que pó de estrelas, restos cósmicos, deixados ao acaso e que, durante esse acaso, se encontraram e deram as mãos e formaram uma coisa maior, um corpo celeste, que cresce todos os dias mais um bocadinho. Vês Beatriz? Como os meus olhos se perdem de ternura nos teus; nesses trilhos secretos onde não deixas ninguém entrar com medo que descubram as tuas fragilidades. Mas não somos sempre rocha, Beatriz. Por vezes somos um pouco mais vulneráveis: não somos a faca, somos a carne; não somos o osso, somos o sangue que escorre e cai e se dissipa por todo o lado. Somos isso tudo, Beatriz. Não tenhas medo. Deita a cabeça no meu peito e sente a orquestra que dentro do meu corpo toca para ti - só para ti; sempre para ti. E deixa-me olhar-te enquanto os teus olhos se fecham e a noite cai sobre a cidade imune ao brilho que construímos juntos, aqui dentro, onde as estrelas escolheram repousar. 

Imperatriz
Beatriz
Vem

Pedro Rodrigues