Então corri a calçada da
cidade como se me pertencesse. Olhei. Pessoas apressadas, de passada larga,
pessoas de outras terras, outros lugares, a admirarem tudo à sua volta, de
máquina fotográfica em posição de disparo: monumentos, casas, estradas, o céu. Admiravam
tudo, menos aqueles que julgavam invisíveis. Almas perdidas pelos cantos da
cidade. De palmas abertas à procura de uma esmola: para matar a fome: de
comida, de droga, de álcool, de tabaco. Alguns pareciam-me perdidos no momento.
A pobreza e a solidão não têm relógio, ao que parece. As noites são frias, os
dias são quentes. O mundo acontece à sua margem. Alguém se esqueceu deles.
Talvez porque a pobreza seja um embaraço. Talvez porque o medo da queda, para
quem olha de cima, é enorme. À sua volta há gargalhadas. Miúdos de sacos
carregados de coisas que provavelmente não necessitam. De telemóvel na mão, a
mandarem a próxima mensagem sem sentido. Quem os pode censurar? Não têm
preocupações ou necessidades, mas a culpa não é deles. Não foram os seus
telemóveis topo de gama que apagaram estas pessoas da sociedade; não foram eles
que os marginalizaram. A culpa morreu solteira – sempre ouvi dizer. A cidade é
um organismo vivo que nos absorve. Há quem caia e quem se levante. Há quem viva
para as fotografias nas redes sociais, e quem nem saiba o que isso é. Ninguém
pode culpar uns, ou outros. É a ordem normal do mundo. O desequilíbrio que me
custa engolir. Neste momento, enquanto escrevo esta crónica no meu computador,
há quem esteja a contemplar o céu, nesta
noite amena de primavera. Imagino-os a sonharem com outro tecto sobre as suas
cabeças. Imagino que não sonhem com a sua fotografia nas redes sociais, ou com
a sua cara no jornal das oito. No entanto, acredito que eles queiram ser vistos.
Nem que seja aos poucos, como se as pessoas estivessem agora a acordar, de
olhos ainda remelosos. Sempre me disseram que todas as coisas que existem têm
uma sombra. Talvez eles sejam a sombra desta sociedade injusta. Quanto maiores
formos, maiores serão as nossas sombras – é física, pelos vistos.
PedRodrigues