Tinhas oitenta e seis anos. A
tua cabeça já não encontrava datas – talvez porque os dias já fossem todos
iguais. As tuas pernas cediam aos caprichos da gravidade, embora tu nos tentasses
enganar com ginásticas inventadas. Os teus cabelos eram brancos, embora tu me
contasses que quando eras novo o teu cabelo era escuro como a noite – e eu
acreditava. Esquecias-te das luzes acesas, da água a correr depois de fazeres a
barba, das situações mais corriqueiras, aqui da terra, mas não te esquecias das
histórias de outros tempos. Passavas horas a repetir-me que eras o mais
trabalhador de todos. Que as tuas mãos e os teus braços tinham tanta força que
conseguiam dobrar aço, talvez mover montanhas. Nos navios todos os capitães te
gabavam “não há nenhum marinheiro como o Pimentel”, pau para toda a obra. Foste
pai, avô e bisavô. Criaste-nos a todos e nunca nos faltou nada. Deste-nos tudo
o que podíamos pedir, e nós tentámos retribuir. Viste a avó partir há dez anos
e, desde esse dia, nunca te conheci outra cor na roupa que não fosse o preto.
Lembro-me de te dizer uma vez para usares uma camisola cinzenta e tu
mandaste-me passear, no teu jeito bruto, porque até ao fim dos teus dias
usarias o preto. Talvez fosse uma forma de mostrares por fora o vazio que a
morte da avó te tinha deixado por dentro. Não sei. O que sei é que durante anos
– até a demência se instalar no teu cérebro cansado – foste todos os dias ao
cemitério, com chuva, ou sol, beijar a fotografia da avó. Talvez a mais bonita
cena de amor que já vi, digna de um filme. Tinhas a terceira classe, pouco
sabias escrever, ou ler, mas nunca deixaste nenhum dos meus livros a meio.
Sempre os leste com orgulho, mesmo sabendo eu que algumas palavras escapavam ao
teu vocabulário rudimentar – imagino que as substituísses por outras, mais
bonitas e acessíveis. Era com imensa alegria que me acompanhavas para todo o
lado: Lisboa, Porto, Leiria, Coimbra. Em todas as apresentações escutavas
atentamente as minhas palavras, como se nunca me tivesses ouvido falar. Depois,
no fim, abraçavas-me e gabavas-me a toda a gente. Éramos melhores amigos. Os
pilares um do outro. Tratei-te feridas, medi-te febres, tapei-te com mantas.
Fiz o que podia para que te sentisses sempre amado e respeitado: um rei, no seu
castelo. Eras o meu primeiro abraço nas chegadas, e o último beijo nas
despedidas. Sempre que a mãe me ligava, falavas comigo, sempre com o mesmo
discurso e a mesma saudade na voz. Éramos inseparáveis: companheiros de armas,
parceiros de crimes.
Hoje, antes de descer para o
meu quarto, passei pelo teu. Estava vazio.
As lágrimas teimaram em cair porque
me apercebi que daqui para a frente assim será. Ficam as fotografias. As
paredes frias que ainda escondem os restos condensados da tua respiração, do
teu último suspiro. Penso ter apertado pela última vez as tuas mãos calejadas;
ter beijado, pela última vez, a pele fina da tua testa. Partirás enorme, como
sempre foste. E assim o serás, para todo o sempre. Gostava de continuar a
escrever, mas as palavras começam a confundir-se com as lágrimas e tudo se
torna turvo e difícil. Fico-me por aqui, e pela imagem da fotografia que dorme
ao meu lado, na mesa de cabeceira, em que estou eu, tu e a mãe, muito felizes,
de sorrisos rasgados nos rostos. É assim que te recordo: a sorrir, por eu ter
chegado.
Adeus, meu amor maior.
PedRodrigues