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domingo, 30 de outubro de 2016

Fado (1)


O que fazer quando tudo arde?

 

O que fazer quando tudo arde
E no teu rosto se fecha a cidade?
Serão teus olhos líquidos
As ruas onde se perde a saudade?

 

Tivemos o mundo nas mãos
Julgámos ter descoberto a eternidade
Mas o amor é um fogo selvagem
O que fazer quando tudo arde?

 

E nas lágrimas do adeus
Esconde-se toda a verdade
Meu amor, que fazer? Se nada há
A fazer quando tudo arde?

PedRodrigues

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Sobre as árvores, e o tempo


Nunca te perguntei o nome das árvores. Passávamos por elas, todos os dias, e nunca tive vontade de o fazer. Não sei, julguei que aquela sombra seria uma certeza que viveria comigo para sempre, e então achei não ser necessário saber que nome lhe dar. Eram as árvores. As árvores onde todos os dias passávamos e, por vezes, víamos as folhas caídas, um ou outro pássaro a cantar melodias primaveris. Eram as árvores onde me encostava. Onde, um dia, dei o meu primeiro beijo. Eram.

- Lembras-te?

Foste embora e nunca te perguntei o nome. Agora cortaram-nas e não tenho como as explicar às outras pessoas, porque as árvores são todas iguais: com raízes e troncos e ramos e folhas. A certeza deixou de o ser e não há como a trazer de volta em conversa sem que seja apenas uma memória enevoada à qual ninguém consegue dar forma. Cairão no esquecimento? Talvez. Porque ninguém a quem conte a história da beleza do meu primeiro beijo conseguirá saber com que linhas se guiar. E as árvores acabarão por cair no esquecimento: uma a uma, como cada um de nós. Precisava que me dissesses o nome das árvores

- Lembras-te?

Aproveitemos, enquanto há tempo.

 

PedRodrigues

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Outono (2)


 

A chuva é uma metáfora
tirada da gaveta onde
eu guardava as tuas memórias
Lá fora há barulhos de vento
e folhas molhadas - há
beleza no caos noturno
do outono.


Cá dentro o teu nome despenha-se
líquido no tecido; a saudade 
sopra uma certeza gelada
Nada parece fazer sentido
e, no entanto, sem ti
tudo procura um novo sentido

 
 
Voltei a fechar a gaveta e
o teu nome voltou a adormecer
nos meus lábios.
Há um silêncio vadio
pela rua: nem chuva, nem vento
nem folhas, talvez a saudade
Estamos ambos cansados
de viver na tempestade.

 

PedRodrigues

 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Saudade em sol maior


E eu pergunto-me, meu amor:
como cabe tanta saudade, neste espaço
tão pequeno?
Será possível transbordar o mar
de tantas lágrimas choradas?
Sabes, meu amor
por vezes é inverno e lembro a primavera
pergunto-me: para onde voam as andorinhas
depois do verão?
Ninguém me responde, mas acredito
que seja um sítio bonito,
com azuis alegres e outras cores vivas.

 

Tenho a certeza, meu amor:
a esta hora as andorinhas cantam
ao teu ouvido.

 

PedRodrigues

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Adeus, meu amor maior

Tinhas oitenta e seis anos. A tua cabeça já não encontrava datas – talvez porque os dias já fossem todos iguais. As tuas pernas cediam aos caprichos da gravidade, embora tu nos tentasses enganar com ginásticas inventadas. Os teus cabelos eram brancos, embora tu me contasses que quando eras novo o teu cabelo era escuro como a noite – e eu acreditava. Esquecias-te das luzes acesas, da água a correr depois de fazeres a barba, das situações mais corriqueiras, aqui da terra, mas não te esquecias das histórias de outros tempos. Passavas horas a repetir-me que eras o mais trabalhador de todos. Que as tuas mãos e os teus braços tinham tanta força que conseguiam dobrar aço, talvez mover montanhas. Nos navios todos os capitães te gabavam “não há nenhum marinheiro como o Pimentel”, pau para toda a obra. Foste pai, avô e bisavô. Criaste-nos a todos e nunca nos faltou nada. Deste-nos tudo o que podíamos pedir, e nós tentámos retribuir. Viste a avó partir há dez anos e, desde esse dia, nunca te conheci outra cor na roupa que não fosse o preto. Lembro-me de te dizer uma vez para usares uma camisola cinzenta e tu mandaste-me passear, no teu jeito bruto, porque até ao fim dos teus dias usarias o preto. Talvez fosse uma forma de mostrares por fora o vazio que a morte da avó te tinha deixado por dentro. Não sei. O que sei é que durante anos – até a demência se instalar no teu cérebro cansado – foste todos os dias ao cemitério, com chuva, ou sol, beijar a fotografia da avó. Talvez a mais bonita cena de amor que já vi, digna de um filme. Tinhas a terceira classe, pouco sabias escrever, ou ler, mas nunca deixaste nenhum dos meus livros a meio. Sempre os leste com orgulho, mesmo sabendo eu que algumas palavras escapavam ao teu vocabulário rudimentar – imagino que as substituísses por outras, mais bonitas e acessíveis. Era com imensa alegria que me acompanhavas para todo o lado: Lisboa, Porto, Leiria, Coimbra. Em todas as apresentações escutavas atentamente as minhas palavras, como se nunca me tivesses ouvido falar. Depois, no fim, abraçavas-me e gabavas-me a toda a gente. Éramos melhores amigos. Os pilares um do outro. Tratei-te feridas, medi-te febres, tapei-te com mantas. Fiz o que podia para que te sentisses sempre amado e respeitado: um rei, no seu castelo. Eras o meu primeiro abraço nas chegadas, e o último beijo nas despedidas. Sempre que a mãe me ligava, falavas comigo, sempre com o mesmo discurso e a mesma saudade na voz. Éramos inseparáveis: companheiros de armas, parceiros de crimes.
Hoje, antes de descer para o meu quarto, passei pelo teu. Estava vazio.
As lágrimas teimaram em cair porque me apercebi que daqui para a frente assim será. Ficam as fotografias. As paredes frias que ainda escondem os restos condensados da tua respiração, do teu último suspiro. Penso ter apertado pela última vez as tuas mãos calejadas; ter beijado, pela última vez, a pele fina da tua testa. Partirás enorme, como sempre foste. E assim o serás, para todo o sempre. Gostava de continuar a escrever, mas as palavras começam a confundir-se com as lágrimas e tudo se torna turvo e difícil. Fico-me por aqui, e pela imagem da fotografia que dorme ao meu lado, na mesa de cabeceira, em que estou eu, tu e a mãe, muito felizes, de sorrisos rasgados nos rostos. É assim que te recordo: a sorrir, por eu ter chegado.

Adeus, meu amor maior.


PedRodrigues

sábado, 8 de outubro de 2016

Amo-te e odeio-te, C.


Amo-te e odeio-te. Não sei se ao mesmo tempo. Não sei se com a mesma intensidade. Não sei. Sei que odeio pensar em ti. Sei que odeio ver-te. Sei que odeio desejar-te. Sei que odeio as voltas que o meu corpo dá para tentar não pertencer-te. Odeio voltar ao início. Odeio que os nossos caminhos se cruzem por termos os mesmos amigos, por termos construído rotinas juntos. Odeio os teus beijos. Odeio a forma como ainda me olhas às escondidas, julgando que não estou a ver. Odeio o eco da tua voz. Odeio as palavras que dizes. Odeio as sapatilhas de edição especial que compraste nos anos. Odeio a forma sorrateira como tentas fingir que não existo. Odeio que inventes barreiras. Odeio que me tentes apagar e ao mesmo tempo manter os meus traços vivos. Mas amo todas as opções anteriores. Amo o teu sorriso de menina. Amo os trejeitos do teu rosto quando não sabes que fazer. Amo a forma como tentas acompanhar as músicas. Amo que desafines. Amo o brilho genuíno do teu olhar. Amo os teus lábios destacados pelo aparelho. Amo a tua vontade. Amo a tua insatisfação com tudo e com todos. Amo a forma como corriges erros corriqueiros. Amo os teus cabelos lisos. Amo a forma como fazes do preto uma cor alegre. Amo tudo em ti. Amo e odeio. É estranho. Amo e odeio. Por mais que tente afastar-te, não deixo de te aproximar de mim.

 

PedRodrigues

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Nota pessoal


[ao Pedro de amanhã, para que não cometa os mesmos erros do Pedro de hoje]
 
Quando a vires pela primeira vez não vais saber se é com ela que vais ficar. Ninguém traz as instruções agarradas ao pescoço; não há um sinal verde que te diga que deves avançar; não há uma força gravitacional a puxar-te para ela. Não. Talvez o teu olhar se cruze com o dela. Quem sabe haja um sorriso. Umas palavras mais tímidas que acabem por se transformar numa longa conversa. Talvez essa conversa venha a durar dias, duas ou três idas ao café, um passeio pelas ruas da cidade. Continuarás sem saber se é com ela que vais ficar. Ela também não saberá se és a pessoa certa. Eventualmente começas a descobrir todas as fissuras e imperfeições nas paredes dela. Ela descobrirá que há estuque caído nos teus corredores. Mas que importa isso? Eventualmente, vão acabando por ficar, a morar um no outro, sem medo que o tecto desabe. Talvez pendurem alguns quadros, pintem algumas paredes, disfarcem uma outra fenda mais feia. Todos procuramos alguém onde possamos morar: um coração que seja casa. Claro que nunca saberás se será ela a tua última morada. Na cabeça dela a questão será permanente: “é desta que mudo o meu código postal?”. Não há como o saber. Vamos ficando, trabalhando, todos os dias, de forma a que a casa não caia, mesmo durante as tempestades. Tudo precisa de manutenção, até o amor. Então o melhor será não baixares os braços, não te calares em longos silêncios, não te esconderes num canto. Não vais saber se é com ela que vais ficar, mas deves-lhe a tua dedicação. Se lhe abriste a porta, para entrar, não a deixes partir.

 

PedRodrigues

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Outubro


Hei-de ter sempre para ti um lugar entre o pó acumulado ao longo do tempo. Não encaremos esta frase com desprezo, ou outro motivo menor. Hei-de ter para ti um lugar que ficará vazio por dentro, à tua espera; algum amor deixado nas linhas estruturantes de uma cicatriz. Recordar-te-ei como um Outubro em que o sol venceu as chuvas de outono. E com o cair das folhas recordarei, também, as tuas lágrimas, lentas, a fazerem-me pensar “será que é mesmo o fim?”. Nenhum ano acaba em Outubro, nenhuma árvore morre pela queda das folhas no outono. Acredito, portanto, na vinda de uma nova primavera, com as tuas cores e o desenho dos teus olhos a luzirem como duas estrelas no céu limpo de uma noite de verão. E nem todas as palavras que escreva, hoje, amanhã, ou depois, te trarão de volta a este lugar – nem farão justiça ao quanto te amei e guardei, com medo de ficar vulnerável. O adeus tem a frieza do aço a escrever por dentro do peito a saudade. Ainda dói ter-te longe (ou não ter-te, afinal). Como a vida muda. Como tudo vira pó: até o amor. Hei-de ter sempre para ti um lugar. Este lugar.

 

PedRodrigues