Lembro-me,
como se tivesse sido ontem, do dia em que a avó Lucinda morreu. Foi um dos piores dias
da minha vida. Sentia-me a desaparecer atrás das lágrimas, dos gritos, dos
gemidos, das súplicas. A minha mãe abriu a porta e saiu para a rua. Também ela
desaparecia atrás das lágrimas, dos gritos, dos gemidos, das súplicas. Quem
andava na rua perguntava o que se passava. Ninguém entendia as palavras. Todos
entendiam o vazio nos olhos dela - atrás das lágrimas. Em momentos, a nossa
casa encheu-se de pessoas: amigos, conhecidos e outras pessoas que não fazia
ideia de quem fossem. Todos se abraçavam, choravam, sussurravam, ofereciam ajuda.
Nesse dia tão trágico, dei por mim a entender a mais estranha dinâmica das
relações humanas: são as tragédias que nos unem.
Somos
feitos da vida dos nossos sucessos, mas, por outro lado, somos o produto
inacabado dos nossos fracassos. Dramatizamos o mundo como mundo que é. Choramos
por alegria e choramos por tristeza. Seremos sempre o exemplo mais abstracto de
tudo o que nos rodeia. À nossa volta não girarão planetas nem satélites, não
seremos o centro de nada, mas pensaremos como tal. À nossa volta girarão
pessoas e à volta dessas pessoas mais pessoas, e eventualmente seremos o centro
de um universo com eixo no nosso umbigo. Somos amigos nas tragédias dos nossos
amigos: choramos com eles, abraçamo-nos a eles, conversamos com eles até que
tudo acabe. Confortamo-los na esperança que um dia eles nos confortem a nós. Se
formos realistas pensaremos assim. Daremos sempre a mão na esperança que, do
outro lado, os dedos se fechem sobre nós e não nos larguem. Viveremos todos os
dias com receio do mundo. Porque o mundo será sempre feito de dias de chuva e
dias de sol, de dias maus e dias bons, de um dia ter e no outro já não.
Esperamos na esperança que nos esperem – sempre. Do outro lado fazem o mesmo.
Os nossos amigos também nos esperam na esperança que os esperem. Se assim não
for, de nada valerão os nossos dedos à procura dos dedos deles. Ninguém será
suficiente. Ninguém será a luz na noite escura. E, de facto, há muitas noites
escuras. Assim como há noites em que a lua é cor de pérola e o tempo parece
parar. Seremos amigos também nessas noites. Seremos mais amigos nessas noites.
Tenho para mim que a amizade é mais difícil nos sucessos que nos fracassos.
Quando fracassamos, todos nos dão as mãos. Todos nos parecem tristes por
simpatia. Todos choram connosco – uns mais que outros. Uns de forma mais
genuína que outros. As coisas más da vida sempre funcionaram como o cimento que
nos une. Mas são as coisas boas que vêm provar até que ponto todos estamos
unidos. Na verdade, os sucessos de uns são vistos como os insucessos de outros.
Ninguém está preparado para girar à volta de ninguém. Invejaremo-nos uns aos
outros na bonança. Nem todos por maldade ou mau carácter, mas porque ninguém
está preparado para não ser o centro do seu universo. A inveja será sempre
feita daquilo que não conhecemos, mas, se quisermos, se realmente amarmos os
nossos amigos como amigos, a nossa inveja será transitória. Um dia, o que não
conhecemos será o que iremos conhecer, e nesse dia seremos a massa mais
compacta que poderemos ser. Nada nos separará - nem o nosso melhor, nem o nosso
pior. Não será esta a verdadeira definição de amizade?
Por
mais que queira, nunca esquecerei o dia em que a avó Lucinda morreu. Sempre que
o recordo, fecho as mãos em busca de um dedo que seja que não me deixe ficar
sozinho. Nunca fiquei. Espero nunca ficar. Há um momento na noite escura em que
a lua é cor de pérola e tudo é permitido. Mas ninguém entra sozinho nessa noite
tão longa.
PedRodrigues
(Crónica da edição de Abril da revista Algarve Mais)