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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Crónica pequenina em que perdi o fio à meada



Amar era tão fácil se a vida fosse a direito. Mas depois há os altos e os baixos, as coisas que não queremos saber e as que não sabemos explicar. Há este contorcionismo de bailarina de limbo, e amar, amar de corpo inteiro, de alma inteira, torna-se na mais cruel das curas. Seria tão mais fácil se todos fossemos como desejamos, se fossemos feitos de esperança. Mas não somos. Somos feitos de carne e de ossos, de matéria viva e alguma matéria morta. Passeamos pelo mundo num desespero constante de passar as pontes que nos unem. Olhamo-nos ao longe na ânsia de algo que nunca sabemos bem o que é. No momento em que nos descobrimos, descobrimos os outros. Abraçamo-nos, beijamo-nos, juramos amor eterno. Infelizmente, as pontes que nos unem são as mesmas que nos separam. Então choramos, suplicamos, vomitamos até ficarmos sem forças.

Onde estaremos no mundo senão no sítio onde devemos estar?

Estaremos sempre errados. Mesmo quando nos sentirmos certos, nunca nos sentiremos completamente certos. Há um estado de dúvida permanente que nos torna naquilo somos. Distinguimo-nos do resto do mundo pela consciência que julgamos possuir, pelos pensamentos que julgamos ter, pelo amor que julgamos dar. (O amor que julgamos dar.) Nunca o damos, trocamos. Esperamos sempre que nos amem de volta. Nem sempre isso acontece e a nossa indignação torna-se insuportável. Esmurramos a mesa, partimos os pratos, rasgamos as roupas. Somos o mais vingativo dos animais. Magoamos os outros por vontade própria. Fechamos os olhos e disparamos ao acaso, sem medo de quem possamos prejudicar no processo. Para nós, a dor dos outros nunca é suficiente. Deve ser sempre maior que a nossa. No entanto não sabemos como medir seja o que for, muito menos a nossa dor. Repito: somos o mais vingativo dos animais. E, desse modo, somos também o mais irracional. Sofremos horrores para escapar à solidão, em contrapartida acabamos por afastar quem nos aparece pelo caminho, mesmo que sem querer.
Assusta-me de morte não entender-nos no mundo. Somos feitos das relações que temos. Essas parecem-nos eternamente inquebráveis. Mas lembremo-nos sempre: as pontes que nos unem são as mesmas que nos separam. Estaremos verdadeiramente preparados para as atravessar?

PedRodrigues

domingo, 15 de abril de 2012

O divórcio


Vinte e cinco anos de casados e agora isto. Depois há os miúdos: o mais novo, o Pedro, que vai para o ciclo este ano e ainda não tem idade para entender estas coisas. Que queres que lhe diga? Vais-te embora, de mala feita, cheio de esperança na algibeira e eu fico por aqui. Fico a limpar os cacos. Que queres que lhe diga? Explica-me. Que diabo tenho eu para lhe dizer, a não ser que o pai resolveu deixar-nos? Nem te dignaste a explicar-me fosse o que fosse. Andavas mudo. Tanto silêncio. Tanta estranheza. Evitavas-me pelos cantos da casa. Escondias-te no escritório. Perguntava-te

-Que se passa?

E tu nem ai nem ui. Nada. Olhavas para os candeeiros, para o chão, para as fotografias dos miúdos – nem para as nossas fotografias olhavas – olhavas para tudo, menos para mim. Na cama não me tocavas. Esperavas sempre que adormecesse e depois deitavas-te. É verdade. Não desvies o olhar. Faz-te homem. Olha para mim. Olha para mim e não me tomes por parva. Quantas vezes fingi estar a dormir e sentia-te a entrar nos lençóis a evitar-me, como se fosse um cão tinhoso, a suspirar como se estivesses a caminho do corredor da morte, como se estar na nossa casa fosse um inferno. Vinte e cinco anos, três filhos, dois carros, uma casa e tu abandonas tudo. Abandonas tudo como o cobarde que és: sem me olhar nos olhos. Partes sem uma explicação sequer, como se não fossemos dignos de partilhar o mesmo ar que tu. Nem pelos teus filhos tens respeito. O João que sempre te viu como um herói: acabou por seguir advocacia por tua causa. Os olhos brilhavam-lhe quando soube que tinha entrado no mesmo curso do pai. Nem uma palavra lhe deste. Porquê? Explica-me por favor que eu não compreendo. Ando aqui às voltas e não compreendo

-Não me pressiones

Nunca te pressionei. Nem um beliscão mais suave, nunca. Razões não me faltavam: noites a fio no escritório, viagens para aqui e para ali, cheiros estranhos entranhados nas tuas roupas. Mil e uma razões para te perguntar

-Que se passa?

Mas nunca o fiz. Sempre interiorizei a tua imagem de marido devoto e pai exemplar – ou vice-versa. Pensava para mim

-Está a trabalhar para nós. Para que possamos levar esta vida que levamos.

E era o mesmo que dizia ao Pedro e ao Diogo quando me perguntavam pelo pai.

-O pai está a trabalhar, a ganhar dinheiro para nós.

Eles sempre à espera que entrasses pela porta para lhes dares um beijo de boa noite ou leres uma história. Que lhes digo agora? Juro-te que não consigo dizer-lhes seja o que for. Tento ser forte por eles. Só por eles. Engulo as lágrimas, quase vomito com os nervos, mas aguento. Por eles. Só por eles. Não sei quanto tempo aguentarei. Vejo-os apavorados, a procurar-te pela casa, a olharem para mim numa curiosidade imensa à espera de uma resposta. Que lhes digo eu, meu Deus?

 - O vosso pai cansou-se de nós e foi embora. Abandonou-nos.

Achas que é isto que os teus filhos merecem? Diz-me. Queres que lhes diga que o pai não os ama o suficiente para se despedir? Achas que eles merecem sentir-se rejeitados, como se eles fossem o problema? E entretanto enquanto te explicas ao tribunal familiar levanta a cabeça e olha para mim. Não me deixes outra carta com justificações na cabeceira, que te dediquei quase três décadas da minha vida e mereço mais que um pedaço de papel manchado de tinta. Levanta a cabeça e olha-nos nos olhos, e se ainda tiveres um pingo de coragem responde-nos: como é que nos fartamos de quem nos ama?

PedRodrigues

(Crónica de edição de Julho da revista Algarve Mais)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Alice num país das maravilhas


Costumava dizer-me

-Quem ama, ama até morrer

Dizia isto numa naturalidade absurda que me deixava perplexo. E a naturalidade era sempre a mesma, absurda, quando falava na Alice dele

-A minha Alice…

Contava-me histórias de um amor épico que enfrentara todo o tipo de obstáculos: desde as viagens dele para a pesca do bacalhau na Terra Nova, ou a altura em que esteve na guerra em África. Sempre com uma expressão de plástico na cara, como se todos os amores tivessem por obrigação de ser como o dele e da sua Alice. Sempre se disse capaz de mover montanhas e montanhas por ela. Nunca lhe passara pela cabeça morrer sem ser ao seu lado. Segundo ele, nem a morte tinha coragem de os separar. Uma ocasião mostrou-me uma carta que lhe tinha escrito quando estava na guerra:

“Querida Alice,

Escrevo-te deste pedaço de mundo esquecido por Deus na esperança que esteja tudo bem contigo e com as nossas filhas. Por aqui, o que as balas não matam, vai matando a solidão. As saudades que trago no peito são difíceis de descrever. Dói-me de alma inteira amar de coração na mão. Trago a vossa fotografia comigo, sempre. Anseio pelo dia em que vos voltarei a abraçar. Até lá, vou-me aquecendo com a recordação dos vossos sorrisos de raio de sol. Não temas por mim. Nem a morte tem coragem de nos separar. Vai dizendo às miúdas que o pai está a chegar. Diz-lhes que as amo. Diz-lhes. Quando menos esperares estarei novamente nos teus braços, a cheirar o perfume no teu pescoço.

Amo-te,

António

PS: diz à Raquel que o pai já enxotou o Papão”

Ainda hoje o recordo, sentado num degrau das escadas lá de casa, a contar, a quem quisesse ouvir, as histórias fantásticas de uma Alice e um António num país das maravilhas, com as suas duas filhas: felizes, inseparáveis, eternos. Tudo isto, sempre, numa serenidade medonha.
É com saudade que olho para os retratos de ambos perdidos pela casa. Na mesinha de cabeceira figura o retrato de uma Alice jovem, a sorrir para ele em quarto crescente, enquanto a Raquel e a Maria lhe vão dando a sopa na boca e ajustando as almofadas. A morte acabou por separar o que parecia inseparável. Sobrou apenas um farrapo miudinho do homem que movia montanhas pela mulher amada. Tenho para mim que esse acabou mesmo por partir com a sua Alice, deixando para trás, apenas, a sua carcaça. Dou por mim a olhá-lo nos olhos de vidro gasto enquanto me deixa uma mensagem quase invisível para que o deixe partir definitivamente. Respondo-lhe, sem que ninguém veja

-Vá descansado. Eu protejo a Raquel do Papão.

(Até que a morte nos separe)

PedRodrigues

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Coimbra dos amores, Coimbra dos doutores: obrigado


No início vi-te como uma prisão. Afastavas-me de tudo o que mais gostava. Eras a personificação de todos os males. Julgava-te causadora de infelicidades extremas e cólicas de saudades. Amaldiçoava o dia em que era obrigado a retornar aos teus braços e, ao chegar, contava os segundos que faltavam para partir. De certa forma, fazias-me sentir deslocado. Obrigavas-me a crescer todos os dias. Agora, a mãe não estava para me fazer o almoço, ou o jantar; o pó não desaparecia por magia e acumulava-se a uma velocidade vertiginosa; as constipações pareciam operações ao apêndice e, só o ligeiro pensamento de uma operação desse género, era sinónimo de noites e noites de insónias. Fizeste de mim homem e, se queres que te seja sincero, não sei quando é que tudo mudou entre nós. Hoje sinto-nos numa sintonia perfeita. A verdade é que cresceste em mim, e eu cresci contigo. A verdade é que és um casulo onde entramos meninos e saímos homens.
Custa-me ouvir-te falada nas bocas dos outros como uma cidade de tradições obsoletas. Como um conjunto de regras disfarçadas de rituais que vêm passando de geração em geração. Para mim, tradição nunca foi sinónimo de códigos ou condutas. Sempre foi sinónimo de tudo o resto. Não me interpretes de forma errada: é com o maior orgulho que uso as tuas vestes. Mas, sinceramente, arrepia-me da mesma forma a tua imagem ao luar sobre o Mondego. Acredita quando te digo que o sol de Coimbra é diferente do sol do resto do mundo. É o único sol que me causa um sorvedouro miudinho nas veias, como se o sangue corresse ao contrário quando me sento numa esplanada a admirar as tuas árvores, a tua calçada, ou a disposição de todos os teus edifícios. Nem o musgo, que se vai multiplicando com o tempo nas tuas paredes, me deixa indiferente. Sinto tudo isso. Sinto como se todos os dias fossem o último, e a saudade - que nos obrigas a aprender - estivesse ao virar da esquina. Aprendi a admirar-te porque, para o bem ou para o mal, comecei a sentir-te como uma extensão de mim. E faltam-me as palavras para descrever o orgulho que é ouvir-te cantada nas tuas entranhas históricas. És cidade de homens e mulheres em corpos de meninos. Quer queiramos, quer não, fazemos parte da tua mais refinada elite. Acredito que choras um Mondego de lágrimas quando fracassamos. Da mesma forma que o teu coração de pedras ancestrais se contrai de orgulho com os nossos sucessos. Um dia hei-de poder agradecer-te por tudo. Dificilmente conseguirei ser justo. Agradecer-te por tudo será sempre uma tarefa hercúlea. Agradeço-te, sobretudo, por me teres dado uma breve introdução ao amor. Por me teres apresentado um leque tão vasto de amores de bolso e me teres ensinado a amar de corpo inteiro e tripas de fora. Se hoje consigo amar como gente crescida a ti te devo. Obrigado.
Serás sempre recordada por nós como a ponte entre a nossa meninez e a idade adulta. Tenho pena de quem não teve o prazer de te conhecer. E tenho mais pena ainda de quem te conheceu, mas não soube  amar-te. Assim sendo, este é o conselho que deixo a quem entra nas tuas portas: vivam como se acabasse amanhã, sintam como se fosse para sempre.

PedRodrigues