Costumava
dizer-me
-Quem
ama, ama até morrer
Dizia
isto numa naturalidade absurda que me deixava perplexo. E a naturalidade era sempre
a mesma, absurda, quando falava na Alice dele
-A
minha Alice…
Contava-me
histórias de um amor épico que enfrentara todo o tipo de obstáculos: desde as
viagens dele para a pesca do bacalhau na Terra Nova, ou a altura em que esteve
na guerra em África. Sempre com uma expressão de plástico na cara, como se
todos os amores tivessem por obrigação de ser como o dele e da sua Alice. Sempre
se disse capaz de mover montanhas e montanhas por ela. Nunca lhe passara pela
cabeça morrer sem ser ao seu lado. Segundo ele, nem a morte tinha coragem de os
separar. Uma ocasião mostrou-me uma carta que lhe tinha escrito quando estava
na guerra:
“Querida
Alice,
Escrevo-te
deste pedaço de mundo esquecido por Deus na esperança que esteja tudo bem
contigo e com as nossas filhas. Por aqui, o que as balas não matam, vai matando
a solidão. As saudades que trago no peito são difíceis de descrever. Dói-me de alma inteira amar de coração na mão. Trago a vossa
fotografia comigo, sempre. Anseio pelo dia em que vos voltarei a abraçar. Até
lá, vou-me aquecendo com a recordação dos vossos sorrisos de raio de sol. Não
temas por mim. Nem a morte tem coragem de nos separar. Vai dizendo às miúdas
que o pai está a chegar. Diz-lhes que as amo. Diz-lhes. Quando menos esperares
estarei novamente nos teus braços, a cheirar o perfume no teu pescoço.
Amo-te,
António
PS:
diz à Raquel que o pai já enxotou o Papão”
Ainda
hoje o recordo, sentado num degrau das escadas lá de casa, a contar, a quem
quisesse ouvir, as histórias fantásticas de uma Alice e um António num país das
maravilhas, com as suas duas filhas: felizes, inseparáveis, eternos. Tudo isto,
sempre, numa serenidade medonha.
É
com saudade que olho para os retratos de ambos perdidos pela casa. Na mesinha
de cabeceira figura o retrato de uma Alice jovem, a sorrir para ele em quarto
crescente, enquanto a Raquel e a Maria lhe vão dando a sopa na boca e ajustando
as almofadas. A morte acabou por separar o que parecia inseparável. Sobrou
apenas um farrapo miudinho do homem que movia montanhas pela mulher amada.
Tenho para mim que esse acabou mesmo por partir com a sua Alice, deixando para
trás, apenas, a sua carcaça. Dou por mim a olhá-lo nos olhos de vidro gasto
enquanto me deixa uma mensagem quase invisível para que o deixe partir
definitivamente. Respondo-lhe, sem que ninguém veja
-Vá
descansado. Eu protejo a Raquel do Papão.
(Até
que a morte nos separe)
PedRodrigues
tocou-me :(
ResponderEliminarComovente. Parabéns :)
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