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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Alice num país das maravilhas


Costumava dizer-me

-Quem ama, ama até morrer

Dizia isto numa naturalidade absurda que me deixava perplexo. E a naturalidade era sempre a mesma, absurda, quando falava na Alice dele

-A minha Alice…

Contava-me histórias de um amor épico que enfrentara todo o tipo de obstáculos: desde as viagens dele para a pesca do bacalhau na Terra Nova, ou a altura em que esteve na guerra em África. Sempre com uma expressão de plástico na cara, como se todos os amores tivessem por obrigação de ser como o dele e da sua Alice. Sempre se disse capaz de mover montanhas e montanhas por ela. Nunca lhe passara pela cabeça morrer sem ser ao seu lado. Segundo ele, nem a morte tinha coragem de os separar. Uma ocasião mostrou-me uma carta que lhe tinha escrito quando estava na guerra:

“Querida Alice,

Escrevo-te deste pedaço de mundo esquecido por Deus na esperança que esteja tudo bem contigo e com as nossas filhas. Por aqui, o que as balas não matam, vai matando a solidão. As saudades que trago no peito são difíceis de descrever. Dói-me de alma inteira amar de coração na mão. Trago a vossa fotografia comigo, sempre. Anseio pelo dia em que vos voltarei a abraçar. Até lá, vou-me aquecendo com a recordação dos vossos sorrisos de raio de sol. Não temas por mim. Nem a morte tem coragem de nos separar. Vai dizendo às miúdas que o pai está a chegar. Diz-lhes que as amo. Diz-lhes. Quando menos esperares estarei novamente nos teus braços, a cheirar o perfume no teu pescoço.

Amo-te,

António

PS: diz à Raquel que o pai já enxotou o Papão”

Ainda hoje o recordo, sentado num degrau das escadas lá de casa, a contar, a quem quisesse ouvir, as histórias fantásticas de uma Alice e um António num país das maravilhas, com as suas duas filhas: felizes, inseparáveis, eternos. Tudo isto, sempre, numa serenidade medonha.
É com saudade que olho para os retratos de ambos perdidos pela casa. Na mesinha de cabeceira figura o retrato de uma Alice jovem, a sorrir para ele em quarto crescente, enquanto a Raquel e a Maria lhe vão dando a sopa na boca e ajustando as almofadas. A morte acabou por separar o que parecia inseparável. Sobrou apenas um farrapo miudinho do homem que movia montanhas pela mulher amada. Tenho para mim que esse acabou mesmo por partir com a sua Alice, deixando para trás, apenas, a sua carcaça. Dou por mim a olhá-lo nos olhos de vidro gasto enquanto me deixa uma mensagem quase invisível para que o deixe partir definitivamente. Respondo-lhe, sem que ninguém veja

-Vá descansado. Eu protejo a Raquel do Papão.

(Até que a morte nos separe)

PedRodrigues

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