Vinte
e cinco anos de casados e agora isto. Depois há os miúdos: o mais novo, o Pedro, que vai para o ciclo este ano e ainda não tem idade para entender estas coisas.
Que queres que lhe diga? Vais-te embora, de mala feita, cheio de esperança na
algibeira e eu fico por aqui. Fico a limpar os cacos. Que queres que lhe diga?
Explica-me. Que diabo tenho eu para lhe dizer, a não ser que o pai resolveu
deixar-nos? Nem te dignaste a explicar-me fosse o que fosse. Andavas mudo.
Tanto silêncio. Tanta estranheza. Evitavas-me pelos cantos da casa.
Escondias-te no escritório. Perguntava-te
-Que
se passa?
E tu
nem ai nem ui. Nada. Olhavas para os candeeiros, para o chão, para as
fotografias dos miúdos – nem para as nossas fotografias olhavas – olhavas para
tudo, menos para mim. Na cama não me tocavas. Esperavas sempre que adormecesse
e depois deitavas-te. É verdade. Não desvies o olhar. Faz-te homem. Olha para
mim. Olha para mim e não me tomes por parva. Quantas vezes fingi estar a dormir
e sentia-te a entrar nos lençóis a evitar-me, como se fosse um cão tinhoso, a
suspirar como se estivesses a caminho do corredor da morte, como se estar na
nossa casa fosse um inferno. Vinte e cinco anos, três filhos, dois carros, uma
casa e tu abandonas tudo. Abandonas tudo como o cobarde que és: sem me olhar
nos olhos. Partes sem uma explicação sequer, como se não fossemos dignos de
partilhar o mesmo ar que tu. Nem pelos teus filhos tens respeito. O João que
sempre te viu como um herói: acabou por seguir advocacia por tua causa. Os
olhos brilhavam-lhe quando soube que tinha entrado no mesmo curso do pai. Nem
uma palavra lhe deste. Porquê? Explica-me por favor que eu não compreendo. Ando
aqui às voltas e não compreendo
-Não
me pressiones
Nunca
te pressionei. Nem um beliscão mais suave, nunca. Razões não me faltavam: noites
a fio no escritório, viagens para aqui e para ali, cheiros estranhos
entranhados nas tuas roupas. Mil e uma razões para te perguntar
-Que
se passa?
Mas
nunca o fiz. Sempre interiorizei a tua imagem de marido devoto e pai exemplar –
ou vice-versa. Pensava para mim
-Está
a trabalhar para nós. Para que possamos levar esta vida que levamos.
E
era o mesmo que dizia ao Pedro e ao Diogo quando me perguntavam pelo pai.
-O
pai está a trabalhar, a ganhar dinheiro para nós.
Eles
sempre à espera que entrasses pela porta para lhes dares um beijo de boa noite
ou leres uma história. Que lhes digo agora? Juro-te que não consigo dizer-lhes seja
o que for. Tento ser forte por eles. Só por eles. Engulo as lágrimas, quase vomito com os nervos, mas aguento. Por eles. Só por eles. Não sei quanto tempo
aguentarei. Vejo-os apavorados, a procurar-te pela casa, a olharem para mim
numa curiosidade imensa à espera de uma resposta. Que lhes digo eu, meu Deus?
- O vosso pai cansou-se de nós e foi embora.
Abandonou-nos.
Achas
que é isto que os teus filhos merecem? Diz-me. Queres que lhes diga que o pai
não os ama o suficiente para se despedir? Achas que eles merecem sentir-se
rejeitados, como se eles fossem o problema? E entretanto enquanto te explicas
ao tribunal familiar levanta a cabeça e olha para mim. Não me deixes outra
carta com justificações na cabeceira, que te dediquei quase três décadas da
minha vida e mereço mais que um pedaço de papel manchado de tinta. Levanta a
cabeça e olha-nos nos olhos, e se ainda tiveres um pingo de coragem
responde-nos: como é que nos fartamos de quem nos ama?
Não há nada que te possa dizer que te console neste momento (falo por experiência própria). O amor entre um casal vai e vem conforme o tempo e a dedicação que se lhe aplica. Tal como existe amor à primeira vista, também existe o "desamor" num segundo... São coisas complicadas que vão para além da nossa compreensão.
ResponderEliminarAquilo que sei, e te posso garantir com toda a certeza, é que o amor pelos filhos é inesgotável. E isso vê-se bem no que escreves. O silêncio a que ele se votou serviu única e exclusivamente para vos proteger.
Mas eu não sou ninguém para dizer estas coisas, com o tempo irás entender.
Bem sei do que falas. Cada um à sua maneira, passando ou não pela experiência, compadece-se com a situação. Eu não me compadeço. Nunca quis que o fizessem comigo. Não o faço com ninguém. Mas quero acreditar que compreendo. Escreve sempre. Mas sempre. Para nós é bom, a ti liberta-te. Assim o espero.
ResponderEliminar