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sexta-feira, 29 de junho de 2012

Entre o estar e o não estar

Conto as pedras da calçada e tu não vens. Conto os carros a passar e tu não vens. Conto os dias que passam e tu teimas em não vir. Deixo-me ficar por aqui: feito de pedra, feito de ossos, feito de carne, feito de ar, feito de ausência. Conto-te na minha pele e tu não vens. Pergunto-me uma vez

-Onde estás?

Pergunto novamente

-Quando vens?

Conto as dores que me fazem: tu não vens. Tu nunca vens. Procuro-te pelo deserto, aponto-te o dedo

-És tu?

Nunca és. Tenho saudades tuas. Tenho sempre saudades tuas. Ainda estás comigo e eu já tenho saudades tuas. Tornas-te neste vazio e eu por aqui fico a contar-te pelos cantos. Janto a pensar em ti. Ligo a televisão a pensar em ti. Tomo banho a pensar em ti. No outro dia contei três cabelos teus no ralo da banheira. Tu não estavas.

-Onde estás?

Depois chorei em conjunto com o chuveiro. A água corria e eu pensava em ti. Juro que pensava em ti. Contava os pingos e tu não vinhas. Tu não vieste.

-Quando vens?

Arrepio-me de febre e tu não vens. Se morrer tu não vens. Se viver tu não vens. Tenho tantas saudades tuas. Tenho insónias feitas de saudades tuas. Tenho textos escritos de saudades tuas. Vejo-te nas paredes e nos vidros dos carros e nos anúncios perdidos pelos candeeiros. O mundo é feito de ti. O meu mundo é feito de ti, mas tu não estás. Sinto-me parado. Sinto o meu coração parado quando não estás. Aponto-te o dedo

-És tu?

Não. Não és tu. Nunca és tu. O tempo continua parado e está sol lá fora. Vou-me deixando ficar a contar-te por aí. Um dia acabarás por voltar. Todos acabamos por voltar, um dia. Vou ficando por aqui a contar: um, dois, três; um, dois, três; um, dois, três. E nesta espera demorada entre o dia em que partiste e o dia em que voltarás, vou contando o teu vazio pela cama. Nesta urgência que tenho de te abraçar vou contando os segundos que me separam de ti. Entre o estar e o não estar só restas tu. Tudo o resto é feito de nada.

-És tu?

-Onde estás?

-Quando vens?

PedRodrigues


quarta-feira, 20 de junho de 2012

Ensino Superior: habitat dos vampiros das bolsas de investigação


Já faltou mais para que um dia destes tenha de passar de espectador atento desta realidade, a interveniente inconformado com o rumo dela. Aliás acho que essa hora acabou de chegar, visto que atingi o limite - que penso ser o natural - para lidar com a imbecilidade.
Lembro-me de algumas histórias que ouvia da boca de estudantes mais velhos no ano em que entrei para a faculdade. Uma delas sempre me intrigou: “há professores que mandam os exames ao ar: os que ficarem em cima da cama passam, os que caírem no chão chumbam.” Naquela altura nada disto fazia sentido. Vinha de um mundo totalmente diferente, em que os professores nos avaliavam pelo nosso verdadeiro valor e mérito, nos acompanhavam todos os dias, sabiam o nosso nome e distinguiam-nos no meio de uma multidão. Vinha de um mundo justo, onde tudo funcionava na devida proporção: os alunos sentavam-se para aprender, os professores esforçavam-se para ensinar. E vindo deste paraíso pedagógico, custava-me acreditar em todas aquelas histórias que ouvia pelo menos uma vez por mês da boca dos mais velhos. Anos passados, dou por mim a boiar, como um cadáver, neste rio de merda a que damos o paradoxal nome de Ensino Superior. Hoje é a minha vez de posar como aluno mais velho e contar aos mais novos, e a todos os outros, as fantásticas histórias dos vampiros das bolsas de investigação a quem também chamamos paradoxalmente de professores. É triste constatar que despendemos milhares de euros para nos sujeitarmos a um tratamento de segunda como se não fossemos dignos de algo mais e ainda, ao mostrarmos a nossa indignação, ouvirmos da boca de um desses senhores: “se querem ser bem tratados paguem propinas mais elevadas”. O que demonstra da sua parte não só falta de tacto, como também um egoísmo desmedido. No entanto é este o mote de tantos outros que se passeiam pelos corredores desta faculdade, entrando nas salas sem vontade alguma de ensinar, arrastando-se por obrigação. Na altura em que o tratado de Bolonha entrou em vigor todos os problemas pareciam resolvidos. A ideia era a de um ensino presencial em que os alunos teriam o papel mais importante: dinamizar o processo de estudo e aprendizagem. Para os professores tornou-se num alívio, tinha começado a era do “chame-me se tiver dúvidas”. O grande problema é que não há dúvidas se não houver estudo e para haver estudo é necessário alguém que ensine. Assim sendo, o papel do professor seria não só procurar as dúvidas, mas fomentá-las. Não deveria caber ao aluno ser autodidata quando há alguém que é pago para ensinar. Da mesma forma que não deveria haver um tratamento especial aos alunos apenas porque vão às aulas e aos gabinetes. A função do pedagogo será sempre ensinar e avaliar, mas avaliar de forma objectiva: merece passar: passa; não merece passar: não passa. Enquanto situações como esta acontecerem

“Você tem exame para doze, mas os seus trabalhos não estão grande coisa. Estão positivos, mas podia ter tido uma nota como aqui a do seu colega, olhe aqui os trabalhos dele. Venha cá para o ano que você tira uma boa nota a isto. Este ano dou-lhe o nove, mas para o ano você vai tirar uma grande nota e agradece-me”

em que o professor me reprova com exame para doze, a injustiça continuará a reinar. Enquanto um professor passar cinquenta por cento dos alunos inscritos a exame e reprovar os outros cinquenta sem sequer se dignar a meter as notas na pauta, a injustiça continuará a reinar. Mais: enquanto nós alunos soubermos que temos condições para ser aprovados a uma disciplina, ao passo que outros declaradamente não têm e mesmo assim esses mesmos alunos que não tinham condições para ser aprovados o são, enquanto os outros que estudaram sabem o que fizeram e têm todas as condições para ter pelo menos um dez reprovarem, a injustiça continuará a reinar. Enquanto nos obrigarem a rastejar por aquilo que merecemos, a injustiça continuará a reinar. Enquanto optarmos pelo silêncio, a injustiça continuará a reinar. Enquanto nos chuparem o sangue e o dinheiro sem nada recebermos em troca, continuaremos a ser o país dos iletrados com canudo. Mas duma coisa podem ter a certeza: depois do dia de hoje há mais uma voz que não se cala. Estou farto desta merda até aos ossos.

PedRodrigues

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Um desabafo, ou lá o que é


Ficar por aqui a ouvir-te de passos mudos pelo corredor deixa-me sempre inquieto. Ainda me lembro quando os dias eram só dias e passavam por mim como dias. Ainda me lembro do tempo que caía lá fora de gota água em tempestade, do vento que assobiava nas frechas das janelas enquanto eu me ficava por aqui. Era triste por aqui. Era pequeno por aqui. Era nada por aqui. Plantava corações à laia de quem espera que nasçam amores perfeitos. Mas nada era perfeito, aliás era tudo quase perfeito e eu berrava de garganta em riste à procura que o mundo me dissesse alguma coisa. O mundo continuava calado a girar no seu eixo, ignorando que eu, pequeno, também fazia parte dele e precisava de uma explicação. Era tudo quase perfeito e nesse limbo entre a perfeição e a imperfeição as coisas não eram mais que coisas, nem as pessoas mais que pessoas e eu sentia-me incapaz. Da varanda olhava a rua e na rua pessoas passavam por pessoas e não se olhavam nem se viam, como se cada um existisse sozinho neste mundo. Que coisas somos nós, que todos os dias nos inquietamos pela nossa insignificância e não somos capazes de perceber que afinal não estamos sozinhos, que afinal fazemos parte de algo plural e não somos cada um por si. Que coisas somos nós que almejamos a ser mais que o sol, mais que as estrelas e não entendemos que não brilhamos sozinhos, sem que alguém nos acenda. Andamos por aqui. Arrastamo-nos por aqui. Desesperamos por aqui e não somos capazes de descer do nosso cavalo, dar a mão ao próximo, ou marcar humildemente a nossa posição. Preferimos passar invisíveis uns pelos outros a olhar-nos ao espelho a brilhar. Ficar por aqui a ouvir-te de passos mudos sempre me inquietou. Vieste de onde vêm as coisas que me fazem bem. E num dia de sol, como astro a brilhar no céu que és, iluminaste-me. Hoje todos me vêem graças a ti. Tornaste-me especial, ou no meu peito eu sinto-me especial e no teu sorriso tenho a certeza. O mundo pode passar despercebido por nós, esquecer-se de nós, mas não nos apaga. E enquanto nos amarmos e tu andares de passos mudos pelo soalho cá de casa ninguém se esquecerá que estamos aqui. Ninguém é especial sozinho, por isso eu tenho-te a ti e tu tens-me a mim – e nós temos o mundo.

Amor
Tempo
Um momento
Limitado
Infinito
No nosso coração
Amor

PedRodrigues 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A ti, mãe


Mãe.
És a mão que me guia. Quando olho o horizonte, onde começa e onde acaba, olho para ti. Procurar-me será sempre sinónimo de encontrar-te, e encontrando-te encontro-me a mim. Trago-te vestida no corpo. És parte das minhas mãos, dos meus pés, dos meus olhos, dos meus cabelos, dos meus sinais, do meu coração, daquilo que sou e daquilo que sonho um dia vir a ser. Procuro o teu orgulho no mínimo que faço e sofro de dores insuportáveis quando falho nessa tarefa. Para mim serás sempre feita de estrelas. De mil e um sóis, de mil e uma galáxias. Brilhas como mais ninguém brilha e por isso és especial. Não só por isso és especial. A nossa vida tem sido feita de altos e baixos - como todas as vidas. Temos chorado juntos e rido juntos. Não fugimos quando as coisas não correm de feição, nem desatamos a correr desenfreados na direção um do outro quando tudo está bem. Estamos juntos, ligados um ao outro: compactos e inquebráveis. Nada neste mundo é tão forte como nós. Acredito que, se a eternidade existisse, nós seríamos eternos. Mas não somos. Um dia todos partiremos, e tudo o que restará serão as nossas memórias. Este texto continuará a ser um texto, mesmo depois da nossa partida. Será a prova mais real que um dia existimos e um dia nos amámos. É a melhor prenda que te posso dar. Mais que um ramo de rosas, uma camisa, um relógio ou um fio, este texto - assim como todos os outros - é a melhor prenda que tenho para te dar. Viverás enquanto eu viver e continuarás a viver nas páginas que escrevo. Nelas serás sempre o bater do meu coração. Sempre. Sempre. Viverás como vive a tua mãe e minha avó. Essa que nos foi roubada cedo demais. Se procurares bem em cada texto verás que ela anda por lá. Passeia-se pelas frases, como passeava aqui por casa. Tenho saudades dela. Tantas, tantas. Recordo-a em ti: quando estás a fazer a sopa ao Domingo, ou quando te deitas no sofá a dormir ao serão. Vejo-a em cada ruga do teu rosto. Era boa a avó. E tu também és. Amar é um verbo curto para explicar aquilo que te dedico. É o único que sei, mas é curto. Ninguém conseguirá descrever esse sentimento que trazemos no peito enquanto filhos. Poderemos tentar, mas não acredito que o consigamos descrever na sua plenitude. As estrelas no céu não existem para serem contadas. Tu és feita das estrelas do céu. És infinita no meu peito e duras até eu te perder de vista, mãe. Duras sempre. Para sempre. Não te herdei a cor dos olhos, nem o jeito do cabelo, mas outras coisas acabaram por ficar. Vão ficando por aqui. Vão crescendo comigo e vivendo através de mim. Não te deixarei partir, nunca. A vida continuará a seguir o seu rumo, o mar continuará a deitar-se na areia, o sol continuará a brilhar, a chuva continuará a cair e nós continuaremos a seguir o nosso rumo como todas as coisas. Foste filha, és mãe, um dia serás avó e assim sucessivamente até que o mundo esqueça que um dia cá estiveste. Não esquecerá. No que de mim depender, nunca esquecerá. Há coisas na vida que não merecem ser esquecidas. Pessoas que deviam durar como monumentos. E tu és uma delas. E tu viverás escrita no coração das minhas palavras.
Amo-te.

PedRodrigues

(Crónica da edição de Junho da revista Algarve Mais)