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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

História de amor fragmentada


É aqui, no meio deste mar, deste fado, que te escrevo, meu amor. Aqui, neste deserto líquido, o céu mistura-se com a água. Não há horas, não há norte, não há sul, nem este, nem oeste. Aqui existo eu e os meus marinheiros. Para lá das escotilhas o sol nasce e põe-se dentro do mar. Perdemos a noção do tempo. Perdemos a noção do espaço. São as saudades que sinto de ti que me guiam.

Decidi há alguns anos, naquele dia, naquele momento, naquele segundo, que o resto da minha começava ali: contigo. Ainda me lembro do teu vestido branco de gola rendada, do teu olhar inocente na minha direcção. Coraste e eu corei contigo. Como controlar os impulsos da primeira troca de olhares? Deixei os meus amigos e fui ter contigo

-Olá

O teu rosto não mentia. Respondeste-me timidamente, quase entre os dentes

-Olá

Eu avancei

-Chamo-me Vítor

Ainda consigo ouvir a música que tocava de fundo enquanto contava as rendas da tua gola.

-Chamo-me Maria José

A verdade é que eu já sabia o teu nome. Sabia, mas queria ouvi-lo da tua boca, na tua voz de mel, queria ver os teus lábios a vibrarem com cada palavra.

Do momento em que trocámos os nossos nomes até ao momento do nosso casamento a história teimou em repetir-se: conhecemo-nos, crescemos, o nosso amor cresceu connosco, eu pedi-te em casamento e tu aceitaste. Esses dias só a nós nos pertencem.


Os homens são barcos que vão e vêm pela vida e acabam sempre por atracar num porto seguro. Tu és o meu porto seguro e sempre serás. Sempre que parto sonho com o dia do meu regresso. Todas as horas são horas de agonia. Nada nem ninguém consegue separar-nos. Nem este mar imenso, nem todos os oceanos do mundo. Teimo em partilhar-te com o mar. Sei que deves achar injusto – e na verdade é. Mas foi esta a vida que escolhi. O teu pai teve o mesmo destino e a tua mãe, tu e a tua irmã nunca deixaram de o esperar. Aqui no meio desta solidão das horas que se confundem é a tua imagem que me guia. Espero que não te esqueças de mim. Minto. Sei que não te esqueces de mim.


Atracarei dentro de horas e espero que estejas à minha espera. Quantas vezes vieste a Sines buscar o teu pai? Quando os meus pés pisarem o cais espero pelo teu abraço. Espero pelo teu sorriso, pelas tuas mãos, pelo teu cabelo ao vento. Espero-te. Espero-te toda. Espero-te inteira.


Consigo ver-te a chegar, deste lado do cais. O meu pai e a minha mãe vieram comigo. Esperei durante dois meses de coração na mão. Ainda não sabes, mas estou grávida. Não quis dizer-te por telefone, acho que uma notícia destas é demasiado grande para ser partilhada por telefone. Não imaginas a vontade que tive de te contar. Não imaginas a ansiedade desta espera demorada pelo teu abraço.


Corri até ti mal pisei o cimento do cais. O cheiro do teu perfume confundia-se com o cheiro do óleo e da gasolina dos motores em nossa volta, mas isso pouco importava. Tinha-te novamente nos meus braços. Brilhavas mais que nunca. Beijámo-nos cerca de cem vezes - ou na minha cabeça assim pareceu.

-Estou grávida

Disseste enquanto as pregas dos teu lábios encaixavam nas pregas dos meus lábios.

-Estou grávida

O tempo parou. Continuou parado até que consegui assimilar as tuas palavras. Estavas grávida. Às vezes, quando pensamos que não podemos ser mais felizes, a vida prega-nos estas partidas.


O nosso filho faz hoje cinco anos. Custa-me o mundo viver separado de vós. Amo-vos com todas as minhas forças, mas foi esta a vida que escolhi. Espero que ele não se esqueça da minha cara, ou da minha voz. Este mar, este fado, separa-nos aos três. A saudade estilhaça-se com as ondas. Aqui, no Pico, o sol brilha. Estamos atracados, mas este porto a mim nada me diz. Falta-me o teu abraço, faltam-me as mãos do nosso filho a agarrem-me os dedos. Aqui a saudade é maior que este oceano que se estende à minha volta. Um dia disseram-me que com um A o mar fica maior. Ao que parece, esqueceram-se de dizer que quanto maior o mar, maior a saudade. Talvez não seja sempre assim. Mas, a verdade, é que neste momento o mar é demasiado grande. Não vejo a hora de regressar.


Faz hoje seis meses que estás no mar. O Pedro está cada vez mais crescido. Acreditas que já sabe o alfabeto de trás para a frente? Tem os teus olhos, o teu cabelo e o teu nariz. De mim só herdou a beiça levantada. Fala várias vezes em ti e nota-se tão bem a saudade espelhada na cara dele. Volta depressa para nós.


Daqui a poucas horas estou em casa. Este ano consigo passar a noite de Natal e o Ano Novo. Pela primeira vez em três anos consigo passar convosco ambas as datas. O navio seguirá sem mim para a reparação. Ao que parece está com problemas no casco. Com sorte ficará na doca durante algum tempo e eu poderei ficar por casa mais alguns dias. Tenho tantas saudades vossas. Tantas, tantas. Mas daqui a poucas horas estarei junto de vós. Esperem só mais um pouco: estou mesmo a chegar.


Aos meus pais que, em conjunto com os meus avós, partilham a mais bonita história de amor que conheço. Feliz vigésimo nono aniversário de casamento. E peço desculpa por esta prenda de aniversário antecipada - juro que ainda sei a data do vosso casamento.

Com Amor,

Pedro



PedRodrigues


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