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sábado, 10 de dezembro de 2011

A língua morta que Camões fala

Somos o que restou do divórcio: eu – ou o meu resto – e o Camões. Somos os despojos de uma guerra que se prolongou durante dezasseis meses. Dezasseis meses que mais pareceram uma vida. Foram uma vida. Agora olho-me ao espelho e não me consigo ver. Os meus olhos não são os meus olhos, são outra coisa qualquer: berlindes lascados e gastos, sem o brilho de outros tempos. Rugas atrás de rugas, chagas atrás de chagas. Há meses que não meto os pés no barbeiro - eu que ia lá todas as semanas. O meu cabelo já sente saudades do pente e da tesoura. A minha barba deve estar a pontos de cortar as lâminas. E assim vou vagueando, moribundo, pela vida. A passear o meu cadáver pelos espelhos. Nesta casa em que – agora - apenas vivo eu e o Camões. Um dia foi uma casa feliz, cheia de quadros, fotografias, flores, cheiros, pessoas e barulhos. Hoje é um frasco vazio: frio e sem vida. Nem a viola toca. Como tenho saudades da viola a tocar nas mãos da minha filha Leonor. A casa enchia-se de vida: as paredes cantavam com ela, em coro. Que saudades de abrir a porta e sentir o cheiro do jantar ao lume. De despir o casaco, pousar a mala e vestir o avental. Provar a comida na colher de pau e na boca da minha mulher

-Um bocadinho mais de sal, Ana

Enquanto ela tratava da salada. A Leonor na sala a tocar e o Camões na cozinha, a miar por uma migalha do jantar. Um dia foram tempos felizes, hoje são só memórias felizes que me assombram sempre que me sento no divã da sala a corrigir os trabalhos dos meus alunos: de caneta numa mão e copo de gin na outra. Dou aulas de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras há mais de vinte anos. Os alunos sempre gostaram de mim, – ou pelo menos faziam-me crer que sim – mas desde o divórcio que começaram a olhar para mim de forma diferente. Vejo-os a julgarem-me com o olhar. Não sei se pelo aspecto moribundo que trago, – a tez amarelada, o rosto cansado e as roupas mal engomadas - ou se pelo facto de toda esta catástrofe em que a minha vida se transformou ser o resultado do caso que tive com uma aluna há uns anos. Não sei. Sei que me olham de maneira diferente, embora, para mim, eles continuem iguais. Continuo a sorrir-lhes calorosamente, mesmo quando a minha vontade é esquecer de como se sorri. Continuo a tirar-lhes as dúvidas, mesmo quando são ridículas e a minha vontade assassina me começa a ferver nas veias. Continuo a pensar que são só miúdos, com tempo para crescerem e para aprenderem, embora no meu âmago eu saiba que eles são a gasolina que faz arder páginas de história do nosso país, a saliva gasta desta língua que Camões imortalizou, a geração dos incultos com canudo, uma bomba de erros ortográficos e textos abreviados numa protolíngua que nos aproxima cada vez mais dos dialectos dos homens das cavernas. Apesar de tudo, sorrio-lhes. Faço o meu papel de professor. O único papel que me resta, já que em todos os outros fracassei. Restam-me apenas os trabalhos, o gin e o gato. As sobras dum erro que me continua a perseguir todos os dias. Um erro com dezanove anos – agora que penso: quase a idade da minha filha – de curvas joviais e decote provocante, de discurso eloquente e sorriso fácil. A pedir-me

-Tem um tempo, professor?

Sem erros ortográficos. Sem cuspir na gramática. A pele a pedir-me encarecidamente que lhe inspeccionasse a textura de perto.

(Cada vez mais perto, cada vez mais perto)

- O professor é um homem charmoso

Eu a derreter-me

-Não creio que sejam coisas que se digam a um homem casado e com uma filha praticamente da sua idade, Melissa.

O homem casado a sorrir estupidamente com os elogios, como se tivesse novamente vinte anos. A fraquejar no momento em que devia ter sido de ferro. A carne a falar mais alto. Anos de casamento, de amor a uma mulher, deitados fora numas horas de prazer. Nunca me hei-de perdoar. E talvez por não me perdoar, hoje eu seja apenas este cadáver que se movimenta ao sabor das correntes de ar, a vaguear pelos espelhos desta casa vazia. A conversar com o gato, como se fosse um louco num asilo. À espera que me responda

-Um dia fomos felizes, não fomos, Camões?

Enquanto ele me pede uma migalha do meu jantar de microondas. A olhar para mim num tom repreensivo, como que a responder

-A culpa é tua!

Numa língua morta que só eu entendo. A minha carcaça no sofá: de trabalhos numa mão, copo de gin na outra. O gato a miar à minha volta como que a sentir o calor a fugir-me do corpo. Na casa vazia a voz da mulher das televendas ecoa pelo corredor, no lugar do som da viola e da voz da minha filha. O cheiro da comida ao lume degenerou e tornou-se no cheiro a podre da comida do nosso último jantar enquanto família. Ainda oiço, na minha cabeça, as palavras dela

-És um traste!

Ou

-Odeio-te! Nunca mais vais ver a tua filha…

O gato a sentir o amor a despedaçar-se: mil pedaços pela casa. A olhar para nós com desdém. A olhar para mim

-A culpa é tua…

(A porta a bater estrondosamente)

A minha mulher a gritar da rua

-Fica com o gato… Nunca mais vais ver a tua filha!

(De facto, nunca mais a vi.)

Hoje, no divã da sala, o Camões é a minha companhia. A única prova que me resta duma outra vida em que, realmente, fui feliz.

PedRodrigues

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