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sábado, 1 de setembro de 2012

O que fazer quando tudo acaba?


Passou pela loja e comprou uma garrafa de whiskey barato. Tirou a gravata e desapertou o botão do colarinho. Deixou-se ficar no carro a ver o sol esconder-se atrás do mar, afogando os minutos em goles incansáveis. Os últimos turistas saíam da praia de sorriso rasgado no rosto e isso inquietava-o. A felicidade deles inquietava-o.
Não se julgava com pressa de chegar a casa. Aliás não se julgava com pressa de nada. Ainda conseguia ouvir as palavras do patrão

-Sente-se, sente-se. Quer tomar alguma coisa?

Ao entrar no gabinete. Em vinte e tal anos de serviço nunca havia sido chamado uma vez sequer. Nem uma mancha no currículo. Tudo sobre rodas, tudo nos conformes: entrava às nove, saía às cinco, ao almoço comia a correr e às vezes nem almoçava, se fosse preciso. Nunca havia sido chamado por coisa alguma até àquele fatídico dia.

-Lamento informá-lo…

Nada de bom é dito com tais palavras. A última vez que as ouvira, a mulher tinha sofrido um acidente de carro e estava em coma no hospital. Nada de bom poderia resultar dali. Sentia o ar a ser-lhe sugado lentamente dos pulmões. Ninguém sabia do seu sofrimento constante. Da sua batalha incansável com os dias. Era uma pessoa calada, não fazia amigos com facilidade - não procurava fazê-los. Sempre se sentira preso numa máquina de criar solidão. Todos aqueles que o amavam acabavam por desaparecer, de maneira que se escondia do mundo com medo que o mundo lhe fosse roubado. A vida é assim, pensava ele. E que vida era aquela. A única coisa que o impedia de se autodestruir acabara de lhe ser retirada. Desde os vinte anos que trabalhava ali.

-Espero que tudo corra pelo melhor.

Mas que poderá correr melhor quando tudo está destinado a correr mal? Não há subidas quando a vida é a descer. Que faria ele? A mulher em coma no hospital, nem um sinal que iria acordar. Vivia todos os dias com medo que

-Lamento informá-lo, mas a sua mulher não vai acordar

Ela desaparecesse por completo. O sol começava a apagar-se atrás do mar. As ondas desmanchavam-se de bruços na areia e ele sentia-se feito de ar a cada gole na garrafa. No pontão um pescador lutava com a cana de anzóis vazios. A vida acabava-se lá fora a cada segundo que passava. Desligou o telemóvel e deixou-se ficar na vontade de desaparecer com o sol. Fechou os olhos por um instante à procura de respostas entre os espectros de luz no meio da escuridão. No meio do silêncio da orquestra da beira-mar conseguia ouvir uma voz desdenhosa

-Lamento informá-lo, mas…

O pescador olhava-o atrás do vidro. E de cigarro a bailar nos lábios, com um balde vergado pelo peso dos peixes, continuou

-Acho que chegou ao fim da estrada.

Não é que tinha razão?

PedRodrigues

(Crónica do mês de Setembro na revista Algarve Mais)

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