Natália
sentava-se todos os dias, à mesma hora, na mesma margem do rio. Olhava
nostálgica os barcos ancorados no cais e deixava-se embalar pelos seus
movimentos harmónicos. Ali se sentia feliz. Ali se sentia feita de água e de
algas e de lodo. Por ali tinha nascido, por ali tinha sido criada. Desde muito
nova que as lides dos pescadores e das varinas se tinham incrustado na sua
pele. Desde muito nova que as águas daquele rio eram as suas confidentes. Ali
tinha chorado amores e lavado feridas. Ali tinha dado o seu primeiro beijo. Ali
tinha dito pela primeira vez
-Amo-te
Abafada
pelo som das gaivotas famintas que sobrevoavam as pequenas embarcações. Ali
tudo. E talvez por isso, Natália se sentisse tão presa àquele lugar, tão filha
daquelas águas. Talvez por isso continuasse, dia após dia, a sentar-se naquela
pedra, naquela margem do rio, a olhar esperançosa as pequenas ondas que se
formavam ao sabor da brisa
-De
que será feita a brisa?
Ninguém
sabia de que seria feita a brisa. Talvez fosse feita dos sonhos dos homens.
Natália julgava existirem homens eternos. Por esses dias tinha apenas vinte
anos e nunca tinha perdido ninguém. Como sentia saudades desses dias. Como
sentia saudades dos dias em que via o avô abraçado à avó na sala. Se não
existiam homens eternos, por certo existiam abraços eternos. Ainda hoje
conseguia sentir o amor daquele abraço. Há coisas que permanecem eternas em
nós. Há pessoas que não partem inteiramente. Mas a verdade é que a vida
acontece: a cada hora, a cada minuto, a cada segundo. Acontece connosco e nós
acontecemos com ela. Doeu-lhe de pensar que afinal a brisa não era feita de
sonhos. Chorou. E à medida que chorava, ondas desmanchavam-se nas rochas
-De
que serão feitas as ondas?
Natália
julgava serem feitas da vontade dos homens. A vontade dos homens é irónica: querem
tocar as estrelas, mas recusam-se a tirar os pés do chão. Naquele momento a
vontade dos homens pouco importava. Natália apenas queria recordar o rosto da
avó e o toque das mãos ásperas do avô. A vontade dela era ouvi-los uma última
vez
-Minha
menina
E
que calor naquele
-Minha
menina
Dito
em uníssono, nas vozes trémulas de ambos. Que sensação de paz e de conforto
atrás dos olhos daqueles dois amores feitos de ondas e de sonhos que um dia lhe
tinham sido roubados. Onde estavam os calos e as rugas e as toneladas de amor?
Se as ondas eram feitas da vontade dos homens porque se desmanchavam contra as
rochas? Por que razão se estilhaçavam as vontades?
As
lágrimas multiplicavam-se no rosto de Natália. A imagem do rio, que espelhava o
sol à sua frente, começara a ficar desfocada. Ao limpar o rosto à manga da
camisola sentiu uma mão no seu ombro. Um jovem pescador, que acabara de ancorar
a sua embarcação, olhava-a relutante
-A
menina está bem?
A
pergunta caiu em seco no vazio que chorava. Será que alguma vez estamos bem?
-Estou,
não se preocupe.
As
lágrimas pareciam cessar o seu movimento, mas o vazio continuava enorme. O
jovem pescador sentou-se ao lado de Natália a contemplar toda aquela paisagem
de sonhos e vontades. Apesar de ainda jovem, notava-se nas mãos as chagas de
uma vida de trabalho. Trazia com ele o cheiro a rio - tão tranquilizante. Tirou
das calças um maço de cigarros e perguntou
-Importa-se
que fume?
numa
calma abismal. Acendeu o cigarro e olhou em volta até se prender no rosto ainda
húmido de lágrimas que se encontrava ao seu lado
-São
lágrimas de tristeza?
(Ela
de olhar mortiço fixado no limo de uma rocha)
-São
lágrimas de saudade.
-Você
é a neta da falecida T’Lucinda e do falecido T’António Sacramento, não é?
Costumo vê-la por aqui…
-Sou,
sim…
-Eu
sei que não me conhece e não me quero intrometer…
(Olhava-a
de soslaio, como que na esperança que o mandasse calar)
-Sabe,
quando alguém parte deixa sempre um vazio muito grande. E esse vazio deve ser
infinito porque nada o parece preencher. Mas se há coisa que aprendi a aceitar
é que o rio corre para o mar, e não o contrário. Tudo o que um dia há, um dia
deixará de haver…
Natália
olhava-o confusa. Que pescador erudito seria aquele que lhe apontava o sentido
da vida com toda a facilidade do mundo?
-Ainda
lhe digo mais: nós somos filhos daqueles que se apaixonaram nas margens deste
rio. Que são filhos daqueles que sobreviveram às custas deste rio. Somos filhos
do sangue, suor e lágrimas que as águas deste rio lavam. Acredite quando lhe
digo que este rio é mágico.
-A
verdade é que eu não acredito em magia, mas acredito que este rio tem qualquer
coisa de especial. Sinto-o nas veias. Sinto cada gota no sangue. E sempre que
aqui venho, sinto-me completa e em paz.
Sorriram
ambos. A conversa prolongou-se durante o tempo suficiente para durar uma vida.
Natália continua a sentar-se na mesma pedra todos os dias à espera do jovem
pescador. Os rios correm para o mar, as ondas desmancham-se nas rochas e a
brisa sopra leve até ser vento. Todos os barcos precisam de um porto seguro
onde ancorar. Natália tornou-se nesse porto seguro para o jovem pescador. Ainda
hoje as águas desse rio lhes lavam o sangue, suor e lágrimas. E sabem que mais?
Há lágrimas que são choradas de sorriso no rosto.
PedRodrigues
(Texto escrito para a edição de dois mil e treze da Revista Via Latina)
Fico perplexa com a tua escrita! Adoro cada texto :) Muitos parabéns e continua assim!
ResponderEliminar