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segunda-feira, 25 de março de 2013

O rio


Natália sentava-se todos os dias, à mesma hora, na mesma margem do rio. Olhava nostálgica os barcos ancorados no cais e deixava-se embalar pelos seus movimentos harmónicos. Ali se sentia feliz. Ali se sentia feita de água e de algas e de lodo. Por ali tinha nascido, por ali tinha sido criada. Desde muito nova que as lides dos pescadores e das varinas se tinham incrustado na sua pele. Desde muito nova que as águas daquele rio eram as suas confidentes. Ali tinha chorado amores e lavado feridas. Ali tinha dado o seu primeiro beijo. Ali tinha dito pela primeira vez

-Amo-te

Abafada pelo som das gaivotas famintas que sobrevoavam as pequenas embarcações. Ali tudo. E talvez por isso, Natália se sentisse tão presa àquele lugar, tão filha daquelas águas. Talvez por isso continuasse, dia após dia, a sentar-se naquela pedra, naquela margem do rio, a olhar esperançosa as pequenas ondas que se formavam ao sabor da brisa

-De que será feita a brisa?

Ninguém sabia de que seria feita a brisa. Talvez fosse feita dos sonhos dos homens. Natália julgava existirem homens eternos. Por esses dias tinha apenas vinte anos e nunca tinha perdido ninguém. Como sentia saudades desses dias. Como sentia saudades dos dias em que via o avô abraçado à avó na sala. Se não existiam homens eternos, por certo existiam abraços eternos. Ainda hoje conseguia sentir o amor daquele abraço. Há coisas que permanecem eternas em nós. Há pessoas que não partem inteiramente. Mas a verdade é que a vida acontece: a cada hora, a cada minuto, a cada segundo. Acontece connosco e nós acontecemos com ela. Doeu-lhe de pensar que afinal a brisa não era feita de sonhos. Chorou. E à medida que chorava, ondas desmanchavam-se nas rochas

-De que serão feitas as ondas?

Natália julgava serem feitas da vontade dos homens. A vontade dos homens é irónica: querem tocar as estrelas, mas recusam-se a tirar os pés do chão. Naquele momento a vontade dos homens pouco importava. Natália apenas queria recordar o rosto da avó e o toque das mãos ásperas do avô. A vontade dela era ouvi-los uma última vez

-Minha menina

E que calor naquele

-Minha menina

Dito em uníssono, nas vozes trémulas de ambos. Que sensação de paz e de conforto atrás dos olhos daqueles dois amores feitos de ondas e de sonhos que um dia lhe tinham sido roubados. Onde estavam os calos e as rugas e as toneladas de amor? Se as ondas eram feitas da vontade dos homens porque se desmanchavam contra as rochas? Por que razão se estilhaçavam as vontades?

As lágrimas multiplicavam-se no rosto de Natália. A imagem do rio, que espelhava o sol à sua frente, começara a ficar desfocada. Ao limpar o rosto à manga da camisola sentiu uma mão no seu ombro. Um jovem pescador, que acabara de ancorar a sua embarcação, olhava-a relutante

-A menina está bem?

A pergunta caiu em seco no vazio que chorava. Será que alguma vez estamos bem?

-Estou, não se preocupe.

As lágrimas pareciam cessar o seu movimento, mas o vazio continuava enorme. O jovem pescador sentou-se ao lado de Natália a contemplar toda aquela paisagem de sonhos e vontades. Apesar de ainda jovem, notava-se nas mãos as chagas de uma vida de trabalho. Trazia com ele o cheiro a rio - tão tranquilizante. Tirou das calças um maço de cigarros e perguntou

-Importa-se que fume?

numa calma abismal. Acendeu o cigarro e olhou em volta até se prender no rosto ainda húmido de lágrimas que se encontrava ao seu lado

-São lágrimas de tristeza?

(Ela de olhar mortiço fixado no limo de uma rocha)

-São lágrimas de saudade.

-Você é a neta da falecida T’Lucinda e do falecido T’António Sacramento, não é? Costumo vê-la por aqui…

-Sou, sim…

-Eu sei que não me conhece e não me quero intrometer…

(Olhava-a de soslaio, como que na esperança que o mandasse calar)

-Sabe, quando alguém parte deixa sempre um vazio muito grande. E esse vazio deve ser infinito porque nada o parece preencher. Mas se há coisa que aprendi a aceitar é que o rio corre para o mar, e não o contrário. Tudo o que um dia há, um dia deixará de haver…

Natália olhava-o confusa. Que pescador erudito seria aquele que lhe apontava o sentido da vida com toda a facilidade do mundo?

-Ainda lhe digo mais: nós somos filhos daqueles que se apaixonaram nas margens deste rio. Que são filhos daqueles que sobreviveram às custas deste rio. Somos filhos do sangue, suor e lágrimas que as águas deste rio lavam. Acredite quando lhe digo que este rio é mágico.

-A verdade é que eu não acredito em magia, mas acredito que este rio tem qualquer coisa de especial. Sinto-o nas veias. Sinto cada gota no sangue. E sempre que aqui venho, sinto-me completa e em paz.

Sorriram ambos. A conversa prolongou-se durante o tempo suficiente para durar uma vida. Natália continua a sentar-se na mesma pedra todos os dias à espera do jovem pescador. Os rios correm para o mar, as ondas desmancham-se nas rochas e a brisa sopra leve até ser vento. Todos os barcos precisam de um porto seguro onde ancorar. Natália tornou-se nesse porto seguro para o jovem pescador. Ainda hoje as águas desse rio lhes lavam o sangue, suor e lágrimas. E sabem que mais? Há lágrimas que são choradas de sorriso no rosto.

PedRodrigues
 
(Texto escrito para a edição de dois mil e treze da Revista Via Latina)

1 comentário:

  1. Fico perplexa com a tua escrita! Adoro cada texto :) Muitos parabéns e continua assim!

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