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quarta-feira, 10 de julho de 2013

Finais felizes (2)

Acordei com a sensação de tudo estar certo no mundo. Alinhei o meu coração com o relógio. Decidi verdadeiramente esquecer-me dela. Levantei-me com a certeza de a ter enterrado no passado. Guardei o que havia para guardar numa caixa: juras de amor, roupas, bijuteria, fotografias. Guardei o fantasma do amor passado numa caixa e jurei nunca mais a abrir. Jurei a mim mesmo, a pés juntos
-Aqui acabou o nosso amor. – e assim sendo, enterrei-a no fundo da despensa, junto do pó e das coisas que não têm valor. O mundo continuou a parecer-me certo. Na rua tudo continuava como dantes: pessoas, carros, árvores, calçada, mais pessoas, mais calçada, um gato vadio e todas as outras constantes que fazem parte de todas as ruas. Olhei o mar da janela - sim, conseguia ver o mar da minha janela. Respirei fundo: uma vez. Respirei fundo: novamente. Tudo estava certo no mundo. O meu coração batia em harmonia com as horas do relógio. Harmonia. Que saudades dessa sensação de tudo estar no seu devido lugar. Um dia julguei que, sem ela, o mundo deixaria de ser mundo. Felizmente estava errado.
Há os amigos e depois há elite dos melhores amigos: aqueles que estão quando estamos bem e que não desaparecem quando estamos mal. Aqueles que nos dizem
-Erraste. – quando pensamos que estamos a percorrer o caminho certo. Ou que simplesmente nos ouvem nos momentos de confusão. Porque por vezes é mesmo isso que precisamos: alguém que nos oiça. Alguém que alinhe nos nossos monólogos e acene com a cabeça. Todos os grandes amigos são excelentes ouvintes.
-Hoje enterrei-a no fundo da despensa. Ficou lá, junto das esfregonas e das coisas que não utilizo. Sei que não foi a ela que enterrei, mas sinto como se tivesse sido. Enterrei a memória dela, entendes? – ele entendia, claro, mas permanecia mudo, a ouvir-me. Eu continuava – Dediquei-lhe uma vida. Sete anos são uma vida, ou pelo menos pareceram uma vida. E segundo ela os amores desgastam-se com o tempo. Segundo ela: por muito que se goste de uma canção, passado algum tempo, fartamo-nos de a ouvir. – parei para respirar e beber um pouco do fino que transbordava de espuma à minha frente – Cansou-se de mim. Sou uma canção velha e repetitiva, já viste?
Acenou com a cabeça, brindou comigo e disse-me
-Lembras-te de uma vez te ter dito que andava a ler Robert Frost?
-Sim. O que tem?
-Uma das citações mais famosas dele diz o seguinte: “In three words I can sum up everything I’ve learned about life: it goes on.”
E realmente é verdade: a vida continua. Connosco: comigo, com ele, com ela, com todas as outras pessoas. Continua: com ou sem nós. Podemos continuar com a vida: todos, ou cada um por si. Não há como fugir a isto. A minha vida continua sem ela. Continua.
-Aquela rapariga está farta de olhar para ti… - dizia-me ele convidando-me ao desafio. Olhei-a. Vi-a. Era bela, ou a luz do sol reflectida nos cabelos dela tornava-a bela. Escondia os olhos atrás dos óculos e os dentes atrás dos lábios. Sorriu. Continuava bela. Naquele momento, entre o sorriso e a devolução do sorriso, senti um sorvedouro miudinho no estômago. Duas ou três incertezas: será que o sorriso era mesmo para mim? Que estará a pensar de mim? Como abordá-la? Tantas dúvidas e tão poucas certezas. Tanta coisa que nos escapa e que teimamos em tentar entender. Tanto medo de falhar. Tanto medo de não alcançar. Tanto medo de não corresponder.
-Confesso-te que estou destreinado.
-Não penses demasiado.
-Como é que isso se faz?
-Olhas para ela e deixas-te perder.
-E se não me encontrar?
-É bom sinal. – sorriu, como se guardasse todos os segredos do mundo nele. E como não acreditar em quem guarda todos os segredos do mundo? Respirei fundo, terminei o fino, levantei-me da cadeira e atirei-me ao desafio. Pensei para mim
-Que se lixe! Ninguém segue em frente sem dar o primeiro passo.

(...)

PedRodrigues


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