Acordei
com a sensação de tudo estar certo no mundo. Alinhei o meu coração com o
relógio. Decidi verdadeiramente esquecer-me dela. Levantei-me com a certeza de
a ter enterrado no passado. Guardei o que havia para guardar numa caixa: juras
de amor, roupas, bijuteria, fotografias. Guardei o fantasma do amor passado
numa caixa e jurei nunca mais a abrir. Jurei a mim mesmo, a pés juntos
-Aqui
acabou o nosso amor. – e assim sendo, enterrei-a no fundo da despensa, junto do
pó e das coisas que não têm valor. O mundo continuou a parecer-me certo. Na rua
tudo continuava como dantes: pessoas, carros, árvores, calçada, mais pessoas,
mais calçada, um gato vadio e todas as outras constantes que fazem parte de
todas as ruas. Olhei o mar da janela - sim, conseguia ver o mar da minha
janela. Respirei fundo: uma vez. Respirei fundo: novamente. Tudo estava certo
no mundo. O meu coração batia em harmonia com as horas do relógio. Harmonia.
Que saudades dessa sensação de tudo estar no seu devido lugar. Um dia julguei
que, sem ela, o mundo deixaria de ser mundo. Felizmente estava errado.
Há
os amigos e depois há elite dos melhores amigos: aqueles que estão quando
estamos bem e que não desaparecem quando estamos mal. Aqueles que nos dizem
-Erraste.
– quando pensamos que estamos a percorrer o caminho certo. Ou que simplesmente
nos ouvem nos momentos de confusão. Porque por vezes é mesmo isso que
precisamos: alguém que nos oiça. Alguém que alinhe nos nossos monólogos e acene
com a cabeça. Todos os grandes amigos são excelentes ouvintes.
-Hoje
enterrei-a no fundo da despensa. Ficou lá, junto das esfregonas e das coisas
que não utilizo. Sei que não foi a ela que enterrei, mas sinto como se tivesse
sido. Enterrei a memória dela, entendes? – ele entendia, claro, mas permanecia
mudo, a ouvir-me. Eu continuava – Dediquei-lhe uma vida. Sete anos são uma
vida, ou pelo menos pareceram uma vida. E segundo ela os amores desgastam-se
com o tempo. Segundo ela: por muito que se goste de uma canção, passado algum
tempo, fartamo-nos de a ouvir. – parei para respirar e beber um pouco do fino
que transbordava de espuma à minha frente – Cansou-se de mim. Sou uma canção
velha e repetitiva, já viste?
Acenou
com a cabeça, brindou comigo e disse-me
-Lembras-te
de uma vez te ter dito que andava a ler Robert Frost?
-Sim.
O que tem?
-Uma
das citações mais famosas dele diz o seguinte: “In three words I can sum up
everything I’ve learned about life: it goes on.”
E
realmente é verdade: a vida continua. Connosco: comigo, com ele, com ela, com
todas as outras pessoas. Continua: com ou sem nós. Podemos continuar com a
vida: todos, ou cada um por si. Não há como fugir a isto. A minha vida continua
sem ela. Continua.
-Aquela
rapariga está farta de olhar para ti… - dizia-me ele convidando-me ao desafio.
Olhei-a. Vi-a. Era bela, ou a luz do sol reflectida nos cabelos dela tornava-a
bela. Escondia os olhos atrás dos óculos e os dentes atrás dos lábios. Sorriu.
Continuava bela. Naquele momento, entre o sorriso e a devolução do sorriso,
senti um sorvedouro miudinho no estômago. Duas ou três incertezas: será que o
sorriso era mesmo para mim? Que estará a pensar de mim? Como abordá-la? Tantas
dúvidas e tão poucas certezas. Tanta coisa que nos escapa e que teimamos em tentar
entender. Tanto medo de falhar. Tanto medo de não alcançar. Tanto medo de não
corresponder.
-Confesso-te
que estou destreinado.
-Não
penses demasiado.
-Como
é que isso se faz?
-Olhas
para ela e deixas-te perder.
-E
se não me encontrar?
-É
bom sinal. – sorriu, como se guardasse todos os segredos do mundo nele. E como
não acreditar em quem guarda todos os segredos do mundo? Respirei fundo,
terminei o fino, levantei-me da cadeira e atirei-me ao desafio. Pensei para mim
-Que
se lixe! Ninguém segue em frente sem dar o primeiro passo.
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